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Memória: A verdadeira e trágica história de Maria Callas

Quando Maria nasceu, a mãe ficou tão desapontada por ela ser uma menina que virou a cabeça para a janela do hospital, recusando-se a olhar para a filha durante quatro dias. Nas suas memórias, My Daughter Maria Callas, Litsa embelezaria esse dia 2 de dezembro de 1923 com uma enorme tempestade a assinalar, dramática, o nascimento da futura diva. “Ouvia a neve a bater contra a janela como a palma de uma mão molhada, e do outro lado da avenida via lençóis de neve branca a varrer o Central Parque”, escreveu quase 40 anos depois. A imagem de Nova Iorque coberta de neve é linda, mas a cantora crescera a ouvir a outra história.

Com a mãe Maria ao colo de Evangelia “Litsa” Dimitriadou – Pré-adolescente Aos 11 anos, com a irmã mais velha, Jackie, e um amigo – Flashes Antes e depois de uma atuação

Litsa perdera um filho de 2 anos, Vasily, no verão de 1922, e só voltara a engravidar porque um astrólogo garantira que o próximo bebé seria a reencarnação do seu menino louro de olhos azuis. O marido, George, farmacêutico, aceitara que a data da conceção fosse calculada através de mensagens de espíritos. Tinham emigrado para a América já com Litsa grávida. A filha mais velha de ambos, Jackie, estava, então, com 7 anos, e nenhum deles esperava ver nascer mais uma menina de cabelos e olhos escuros.

Registo Documento em que Maria surge com parte do nome com que foi registada: Sophie C. Kalos (o pai abreviou o nome de família, Kalogeropoulou, para Kalos e, mais tarde, para Callas)

Não esperavam nem nunca o esconderam, conta agora a norte-irlandesa Lindsy Spence, em Diva: A Vida Oculta de Maria Callas. “Maria ressentia-se das recordações de Litsa e via-as como um sinal de não ter sido querida”, escreve nesta nova biografia, editada em português com a chancela da Desassossego. Não se estranha, por isso, que ela arranque com a frase: “A história de Maria Callas não começa com o seu nascimento, mas, sim, na tristeza que o antecedeu.”

Se é verdade que a tristeza e o desamor vinham de trás, a infelicidade seria uma constante ao longo da sua vida, concluímos ao ler as 400 páginas que trazem várias revelações sobre aquela que foi a maior estrela de ópera do século XX. Em entrevista à VISÃO, a autora, que teve acesso a correspondência e documentos inéditos e que com esta biografia quis retratar “a mulher vítima da época em que viveu”, vai ainda mais longe.

“Maria era tão infeliz que fiquei com a impressão de que estava amaldiçoada”, confessa Lindsy Spence, via Zoom. “Tinha tudo o que alguém poderia querer: era bonita, era rica… tudo, mas na verdade não tinha nada.” E, desde os próprios pais, que tentaram sempre explorá-la, até ao milionário grego Aristóteles Onassis, que fez dela a sua amante só para tentar ganhar alguma respeitabilidade no jet set europeu e entrar em Hollywood, “toda a gente queria algo dela”.

Os abusos sem fim

Depois de chantagear Maria vezes sem conta, sempre com pedidos de dinheiro, a mãe rogou-lhe uma praga: “Estás morta para mim. Espero que tenhas cancro na garganta”, leu a biógrafa, horrorizada, numa carta em grego antiquado. Litsa não era de falinhas mansas, lembra. Décadas antes, ainda Maria não tinha 18 anos quando ficou a estudar até tarde no Conservatório de Atenas e um professor tentou violá-la. “Maria conseguiu libertar-se e correr para casa. Lavada em lágrimas, contou à mãe o que sucedera. ‘Que pena ele não ter conseguido’, comentou Litsa, ‘pois nesse caso tê-lo-íamos obrigado a casar-se contigo e ficava o assunto resolvido’”.

O “assunto” era a sobrevivência económica de Litsa, Jackie e Maria, que se tinham mudado para a Grécia em 1937, a pretexto dos estudos musicais da mais nova. Iam supostamente por um ano, mas a verdade é que a mãe decidira separar-se do marido e contava ser auxiliada pela família. Tal não aconteceu, e se Maria continuou a receber aulas de canto foi porque Litsa empurrou Jackie para os braços de um amante rico, a troco de dinheiro.

Jet set” Com o príncipe Ali Khan, em Paris, 1958 – Internacional Após um concerto em Amesterdão, em 1959

Jackie era bonita e esbelta, enquanto Maria era considerada desengraçada e gorda. Usava óculos que a desfeavam, e a adolescência tinha-lhe enchido a cara de borbulhas. Mãe e irmã mais velha, juntas ou em separado, criticavam-na com frequência e sem piedade. Quando voltavam da rua, Jackie traduzia para Maria os insultos que jovens rapazes gregos lhe teriam dirigido.

Décadas mais tarde, Onassis também não iria poupá-la nas palavras. Um dia, no iate Christina, a sobrinha do magnata assistiu a uma desavença entre o casal, lemos na biografia. “‘Só serves para foder’, disse-lhe ele, diante dos convidados espantados. ‘E já nem para isso és grande coisa.’”

Por essa altura, Maria estava com 40 anos e era uma estrela. Mas no iate de Onassis ou em Skorpios, a ilha que ele comprara no ano anterior, os abusos eram constantes. Aquela cena começara com uma discussão, seguida de estalada. “A tripulação estava habituada às suas vozes gritadas e, sobretudo, às cenas de abuso verbal – um tema recorrente – que ele usava como prelúdio para o sexo, às vezes arrastando-a e provocando-lhe dor”, escreve a biógrafa.

No início da relação de ambos, nada indiciara o verdadeiro temperamento do magnata. Só uma vez Maria o vira furioso, a ameaçar partir a cabeça de um paparazzo. Os dois tinham-se conhecido em 1957, numa festa, estava ela casada com o italiano Giovanni “Titta” Battista Meneghini. Dois anos depois, Maria deixava Titta (o divórcio era ilegal em Itália) e investia todas as suas energias e amor em Onassis, mais velho do que ela 18 anos.

Uma imensa falta de amor

Era uma relação de codependência, escreve Lindsy Spence. Ele via-a “como uma proteção entre ele e a corte monegasca, que gostava bastante dela, sobretudo a princesa Grace, com quem Maria tinha uma amizade próxima. Os amigos percebiam que ele estava a usá-la, pois nos círculos sociais, especialmente em Paris e Londres, ela dava ao ‘bandido grego envelhecido’ um aspeto respeitável”.

Onassis continuava o mulherengo de sempre, raramente respondendo às cartas apaixonadas de Maria, que se dizia abandonada enquanto ele andava entre Londres e Monte Carlo. No final de 1959, passou o seu 36º aniversário sozinha. Passou igualmente sozinha o Natal. “Sem ela saber, Onassis tinha começado um romance com Agnetta Castallanos, vice-presidente da Olympic Airways, um caso que viria a durar dois anos”, lemos.

Anos 60 A cantora era reconhecida por onde passava – “Bellissima” Retrato tirado nos anos 50, já depois de ter emagrecido drasticamente – Com o marido Giovanni Battista Meneghini era também o seu agente

No início do ano seguinte, quando Maria engravidou, Onassis ordenou-lhe que fizesse um aborto e ofereceu-lhe “qualquer quantia de dinheiro” para que ela lhe obedecesse. Não podia divorciar-se e ter um bebé dele estando ainda casada com Meneghini, isso seria o fim da sua carreira – mas era tudo o que mais queria. Acabaria, porém, por sofrer um aborto espontâneo, aos quatro meses de gestação, talvez devido a uma traqueíte. “Os estafilococos podem ser perigosos para mulheres grávidas”, lembra a biógrafa.

Na primavera de 1962, Onassis terminou a sua relação com Castallanos e começou outro caso amoroso, com Lee Radziwill, irmã mais nova da primeira-dama americana, Jacqueline Kennedy (com quem mais tarde se casaria). Foi também por essa altura que Maria descobriu que ele era cliente de Madame Claude, cujo bordel em Paris era conhecido por servir a máfia, estrelas de cinema, multimilionários, políticos e membros da realeza.

Além de beber bastante, Onassis viria a ficar dependente de pentobarbital, um sedativo conhecido como “vespa” (as cápsulas eram amarelas). Também recebia injeções de células vivas de ovelhas, vendidas como afrodisíaco, e injetava-se com anfetaminas, esteroides e testosterona, alegadamente para aumentar o vigor. Tudo isto tornava-o “imprevisível e violento”, sublinha a biógrafa. “Sabia onde bater até te magoar, e pela manhã não havia qualquer marca”, contou Maria a um amigo, justificando: ‘Todos os homens gregos batem nas mulheres: aquele que ama bem, sabe bater bem.’”

Nos anos que passou com Onassis, Maria tornar-se-ia também dependente de pentobarbital, que usava como indutor de sono. Ambos tomavam igualmente comprimidos de metaqualona, um sedativo e hipnótico que se popularizou como quaaludes, do seu nome comercial, ou mandraxes, de outra marca que juntava metaqualona e difenidramina (um anti-histamínico).

“É possível que Onassis considerasse apelativas outras propriedades, nomeadamente o uso de metaqualona como droga sexual – era frequente as pessoas abusarem do seu uso para esse fim –, pois, ao mesmo tempo que sedava o sistema nervoso, promovia hipersensibilidade e euforia”, escreve Lindsy Spence. “Terá levado Maria a perder as suas inibições e autocontrolo, permitindo assim a Onassis fazer coisas que mais tarde ela descreveu como ‘[dolorosas] e entediantes’.”

Quando Maria engravidou, Onassis ordenou- -lhe que fizesse um aborto e ofereceu-lhe “qualquer quantia de dinheiro” para que ela lhe obedecesse

A relação com o magnata grego seguia um padrão, nota a biógrafa. Entre a mãe, que Maria sempre desconfiou sofrer de esquizofrenia, e Onassis, um óbvio narcisista, a cantora passou por outras relações abusivas.

Em 1945, quando regressou sozinha a Nova Iorque para ver se dava um impulso à sua carreira, apaixonou-se por Eddie Bagarozy, um homem casado que tinha ambições de criar uma companhia de ópera. O caso amoroso durou até Maria conhecer o futuro marido, em Verona, onde foi chamada a cantar, no verão de 1947.

“Quatro dias antes da partida, Bagarozy pressionou-a a assinar um contrato que o nomeava seu agente por dez anos, o que lhe dava direito a 10% dos seus ganhos”, lemos. Mais tarde, Maria viria a perceber que fora enganada pelo ex-amante, que só queria saber do seu dinheiro, mas, entretanto, entrara em cena Meneghini, então um mero fabricante de tijolos que se tornou logo o seu agente.

Um sofrimento atroz

Titta tinha 53 anos e ela 26 quando se casaram, por insistência dela. Diva nos palcos, em casa Maria gostava da ideia de ser apenas e só a senhora Meneghini. Mas, mesmo depois de se casarem, finalmente, ele sacudia sempre todas as suas mostras de sentimentalismo. Chegava ao ponto de Maria se queixar de que Titta estava apaixonado por Callas, a artista. “Esqueces-te da minha alma”, escrevia-lhe, implorando-lhe que a amasse pelo menos um terço daquilo que ela o amava.

Antes de se casarem, Maria estudava canto em Roma, com o maestro Tullio Serafin, ex-diretor musical do La Scala, e atuava um pouco por todo o país. Titta mantinha-se em Verona e, quando se encontravam, viviam juntos, com os irmãos dele a chamar-lhe abertamente prostituta. Até que, a 21 de abril de 1949, 24 horas antes de partir para Buenos Aires, onde iria atuar durante três meses, no Teatro Cólon, Maria lhe fez um ultimato: “Se não te casares comigo, não volto a cantar.”

Ovações No final dos concertos, chegava a ser chamada ao palco uma dúzia de vezes e era aplaudida de pé por vários minutos – Com Onassis O magnata grego gostava de a exibir, mas raramente lhe foi fiel – Descontraída Na década de 70, com um dos seus caniches

Os dois casaram-se nesse dia e, mal ela regressou da Argentina, foram morar para Verona, por cima do escritório dele. Maria queria muito ser mãe, mas o marido respondia-lhe: “Isso far-te-ia perder um ano da tua carreira.” Sem que ela o soubesse, Titta “encarava-a não como sua mulher, mas, sim, como um produto valioso e estava preparado para vendê-la à melhor oferta”, escreve Lindsy Spence.

Titta tê-la-á amado alguma vez? Quando Maria emagreceu drasticamente, em 1953, deixou de a achar atraente. “As mulheres carnudas têm mais apelo para mim”, confessou, e, sem que Maria soubesse, começou a frequentar prostitutas anafadas no bordel.

A transformação física de Maria tornou-a uma celebridade internacional. Acreditava-se que tinha engolido uma ténia, numa taça de champanhe, um boato que Titta repetiria a um repórter da revista Oggi. A verdade, concluiu agora a biógrafa, é que Maria se submeteu a tratamentos experimentais, na Suíça, que tiveram graves consequências para a sua saúde.

Foi o famoso “Dr. Feelgood”, o médico alemão Max Jacobson, quem lhe deu shots de “vitaminas líquidas”, altamente viciantes, que incluíam anfetamina e metanfetamina. Também conhecido como “Miracle Max”, o charlatão viu os seus métodos serem expostos pelo The New York Times, em 1972. Mas até essa data, “tratou” uma extensa lista de celebridades, desde John F. Kennedy a Leonard Bernstein.

Nas duas décadas seguintes, Maria viria a sofrer de desordens alimentares, nomeadamente de bulimia. A cirurgia a uma hérnia na zona da pélvis, com um material experimental, tinha-lhe deixado sequelas. E queixava-se de sintomas recorrentes que não conseguia explicar: vertigem, cegueira temporária, tensão arterial baixa, eczema, dores articulares, dormência e problemas de destreza.

Depois de chantagear Maria vezes sem conta, com pedidos de dinheiro, a mãe rogou-lhe uma praga: “Estás morta para mim. Espero que tenhas cancro na garganta”

Através de um trabalho quase de detetive, Lindsy Spence descobriu que, já nos anos 70, Maria consultou um médico italiano especialista em desordens neuromusculares, que voou de Paris para a ver. Mario Giacovazzo diagnosticou-lhe, então, dermatomiosite, uma doença rara caracterizada por fraqueza e inflamação muscular e envolvimento cutâneo, que afeta o sistema nervoso central. “Seria a responsável pelas maleitas que a apoquentavam desde a década de 50 e pelas quais fora acusada de ser hipocondríaca”, sublinha a biógrafa.

Esta foi uma das surpresas – resultado de “muito trabalho duro e alguma sorte”, diz – que teve Lindsy Spence, autora de outras biografias, entre elas um bestseller sobre a vida escandalosa da duquesa de Argyll. Em vez de recorrer apenas à correspondência publicada por Arianna Stassinopoulos Huffington, em 1980, passou dois anos embrenhada em três enormes coleções de documentos, além das cartas trocadas com a mãe, que estão na posse de Renzo Allegri, também biógrafo de Callas.

No final da vida, Maria tinha tantas dores que se automedicava, acabando por morrer de repente, a 16 de setembro de 1977, com apenas 53 anos. Como dizia o poeta: “Não lhe perguntem se foi feliz.”

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