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Vilar de Mouros: O Woodstock português faz 50 anos e esta é a sua história e as memórias de quem o viu nascer

As pessoas nuas a tomar banho no rio, a multidão de mochila às costas que rumou à boleia para uma isolada aldeia minhota, os charros fumados em público pela primeira vez, o pop rock a assumir-se como banda sonora de uma nova geração, já influenciada pela cultura hippie mas ainda amordaçada pelo regime marcelista… São tantos os “postais” que poderiam desatar esta viagem no tempo. Vilar de Mouros foi um momento histórico, tanto em Portugal como na Europa – à exceção de Inglaterra, um festival de música com mais de 20 mil pessoas era um fenómeno inédito. Mas durante três fins de semana de agosto de 1971, este festival foi o “Woodstock português”, palco para grandes bandas e músicos, e cenário para algumas revoluções de costumes que, coisa inédita, desafiaram, coletivamente, os anacrónicos cânones morais impostos pela ditadura.

Mas contar toda a história deste festival mítico implica recuar até 1965, quando António Barge, um médico natural de Vilar de Mouros e radicado em Lisboa, decidiu organizar, na pequena aldeia do concelho de Caminha, um festival dedicado à música folclórica do Minho e da Galiza. Três anos depois, em 1968, alargou a programação ao fado e à música erudita, mas também à chamada canção de intervenção, ficando para a História as atuações de Zeca Afonso e de Adriano Correia de Oliveira. As “canções proibidas” destes cantautores resistentes à ditadura foram “cantadas em coro pelo público”, referiram os zelosos relatórios da PIDE.

Filho da terra O jornalista e académico Fernando Zamith recolheu depoimentos e documentos para Vilar de Mouros, 35 Anos de Festivais (Edições Afrontamento, 2003), dedicado ao pioneiro António Barge e às primeiras décadas do festival

Mas Vilar de Mouros era demasiado longe da capital, e ninguém parecia já lembrar-se dessas militâncias quando António Barge decidiu avançar com um projeto ainda mais ambicioso, influenciado pelo festival de Woodstock, que tivera lugar em 1969. “O objetivo era chamar a juventude”, recordou Amélia Barge, a mulher de António Barge, à VISÃO, em 2003, aquando da edição do livro Vilar de Mouros, 35 Anos de Festivais, da autoria do ex-jornalista Fernando Zamith, também ele com ligações familiares à terra.

Para atingir esta meta, parecia não haver limites: a banda pensada para cabeça de cartaz do Vilar de Mouros era nada mais nada menos do que os The Beatles. “Tinham tudo apalavrado, mas a banda entretanto separou-se e teve de se encontrar outra solução”, contou o maestro António Victorino de Almeida, 81 anos, que, à época, participou no primeiro fim de semana do festival dedicado à música erudita e que também colaborou com António Barge na organização. Ainda se pensou em contratar The Rolling Stones ou os Pink Floyd, mas, devido à falta de datas disponíveis, o estatuto de cabeças de cartaz coube ao jovem Elton John e aos populares sul-africanos Manfred Mann. Ao cartaz juntar-se-iam ainda nomes da pop nacional, como os Pop Five Music Incorporated, Sindicato ou o Quarteto 1111.

A excentricidade de Elton John desagradou à PIDE, mas O Século Ilustrado deu honras de capa ao cabeça de cartaz que substituiu os Beatles

“Foi uma pedrada no charco, tanto em Portugal como na Europa, porque só existiam festivais nos EUA e em Inglaterra”, sublinha Tozé Brito, 64 anos, cantor, compositor e administrador da SPA, e que, na altura, integrava a banda Quarteto 1111 ao lado de José Cid. “Foi em Vilar de Mouros que vi, pela primeira vez, gente a fumar charros e a fazer nudismo. Estavam lá a GNR e alguns elementos da PIDE, que se topavam à distância, mas que não intervieram. Estavam mais preocupados com a música de intervenção e não deram o devido valor ao potencial revolucionário do rock”, declara, com humor. O próprio Quarteto 1111 começou a sua atuação em palco cantando à capela o tema Glory, Glory, Hallelujah!, “um hino antirracista da guerra civil americana” que “serviu para marcar uma posição” – embora Tozé Brito reconheça terem sido “poucos a percebê-lo”.

À época, assinala José Cid, os Quarteto 1111 eram “a maior banda nacional”, e a presença no festival possibilitou-lhes tocar, para uma verdadeira multidão, alguns temas do primeiro álbum homónimo: lançado um anos antes, fora imediatamente mandado retirar do mercado pela Comissão de Censura, devido a faixas como Lenda de Nambuangongo ou Pigmentação. “Era um disco sobre a emigração e o colonialismo, portanto tínhamos praticamente todo o nosso repertório censurado”, esclarece o músico. Hoje com 79 anos, Cid considera Vilar de Mouros “um dos momentos mais marcantes” da carreira. Em 1971, o Quarteto 1111 atuou antes de Elton John, mas o artista esteve quase para não subir ao palco, por causa do deficiente sistema de som. Em desespero, António Barge pediu ao grupo português para alugar o seu equipamento. “Não alugámos, emprestámos, e foi assim que Elton John tocou em Vilar de Mouros: com a nossa aparelhagem”, conta José Cid. E o português ainda impressionou os músicos da estrela inglesa, quando interpretou uma versão de Move Over, de Janis Joplin. “Ficaram admiradíssimos por um homem conseguir cantar aquilo assim”, lembra, divertido.

A liberdade passou por aqui
Nesse agosto de 1971, a CP criou comboios especiais para fazer a ligação entre Lisboa, Porto e Caminha, mas o meio de transporte mais usado pela multidão que acorreu a Vilar de Mouros foi a boleia. E chegaram a ser distribuídos panfletos em todo o Norte de Portugal e pela Galiza, apelando à população para dar boleia aos festivaleiros. “Centenas de jovens demandaram a aldeia. Foram de roupas coloridas e práticas, mochilas e sacos às costas. Lançaram-se para a estrada, contando com a boa vontade dos automobilistas”, relatavam os jornais. O próprio Elton John foi à boleia com Júlio Isidro para Viana do Castelo, onde ficou alojado. Ainda assim, a cobertura mediática nacional foi reduzida – a censura rondava. A própria RTP cancelou, à última hora, a gravação dos concertos, mas a Imprensa internacional, essa, deu destaque ao festival, organizado por “um filantropo local”.

Durante três fins de semana, entre 31 de julho e 15 de agosto, a música fez-se ouvir no recanto minhoto. O primeiro fim de semana, dedicado à música clássica portuguesa, contou com António Victorino de Almeida, a pianista Olga Prats ou Natália Correia; no último, atuaram o Duo Ouro Negro e Amália Rodrigues. Pelo meio, tiveram lugar as tais duas noites históricas de “música moderna para a juventude”, como eram inocentemente apresentadas no cartaz.

O Diário de Lisboa enviou os repórteres Cáceres Monteiro (primeiro diretor da VISÃO) e Lobo Pimentel Jr. para cobrir o festival, e a revista Mundo da Canção deu-lhe capa

A população da pequena aldeia primeiro estranhou aquela multidão de “cabeludos” e depois entranhou o espírito – para desespero da igreja local que apenas viu “libertinagem” em Vilar de Mouros. O pároco da aldeia excomungou António Barge, a família deste e todos os colaboradores do festival… O relatório final da Direção-geral de Segurança (DGS) também não foi brando em relação aos “comportamentos promíscuos” daqueles “hippies famintos e cabeludos”. E a indumentária extravagante da estrela Elton John  também não passou despercebida à polícia política, que sinalizou “os modos soberbos” e a “má impressão” causada pelo artista britânico…

“O festival Vilar de Mouros abalou por completo os alicerces políticos e sociais do País”, defende António Victorino de Almeida

A crítica à moral e aos bons costumes, que abalou por completo os alicerces políticos e sociais do País, terá sido “uma mera arma de arremesso usada pelas autoridades, de modo a desviar as atenções de outros aspetos do festival. Falou-se muito das pessoas nuas a tomar banho no rio, mas isso só mostra que eram asseadas”, atira António Victorino de Almeida com uma gargalhada. É essa liberdade que, passadas cinco décadas, Tozé Brito mais valoriza. “Viveu-se um ambiente mágico. E depois do concerto também nós ficámos por lá, como verdadeiros militantes da causa, a dormir numa tenda. Os momentos vividos no meio do público acabaram por ser os mais enriquecedores”, descreve o músico que, confidencia, ainda bebeu “uns copos com Elton John” e chegou “a comprar alguns instrumentos aos Manfred Mann”.

Então em início de carreira, Rão Kyao tocou no festival em dois grupos diferentes, os The Bridge e os Sindicato (“uma banda de jazz rock muito à frente do seu tempo”, descreve, da qual fazia parte Jorge Palma), e recorda Vilar de Mouros como “um pedrada no charco”, um acontecimento em que a música acabou por se tornar quase secundária. “Sentia-se uma onda inebriante que extravasava por completo os espetáculos. Havia uma sede enorme pelo conhecimento e pela experiência de participar num evento com esta vibração”, refere o músico, hoje com 74 anos. “Tive a sorte de, bem no meu começo, poder participar num momento histórico, como foi Vilar de Mouros”, afirma. Quanto aos concertos, já não se lembra muito bem – “já passaram 50 anos…” –, mas sabe que foram “muito bem recebidos” pelo público. “Além de estar tudo grosso, as pessoas estavam realmente abertas a ouvir coisas novas, não havia ali qualquer tipo de fronteiras estéticas ou estilísticas”, lembra Rão Kyao. O músico também por lá ficou nos dias seguintes ao festival: “Dormi em casa de gente que não conhecia de lado nenhum e que mesmo assim nos abria as portas. A hospitalidade dos habitantes de Vilar de Mouros, com aquelas pessoas tão diferentes deles, foi algo marcante para quem lá esteve.”

Memorabília Programas, pósteres e ingressos de Vilar de Mouros, hoje tesouros documentais; os jovens Tozé Brito e José Cid retratados no festival em 1971, onde atuaram sob vigilância das autoridades

Houve um outro lado da moeda na história do festival Vilar de Mouros. Para garantir a presença de Elton John, a organização teve de desembolsar 600 contos (cerca de €3 000), um cachet elevado para a época e que contribuiria para o elevado prejuízo final. Apesar do aparente sucesso, Vilar de Mouros revelou-se um fiasco em termos de receitas de bilheteira, muito aquém do esperado, resultando num descomunal prejuízo de mil contos para a família Barge. “O único dinheiro que recebemos então foram 30 contos, oferecidos pelo Secretariado Nacional de Informação. A RTP prometeu, mas não deu. Ficámos sem coragem para repetir o festival”, confessou Amélia Barge, em 2003. Mas a história não seria bem assim: apenas uma década depois, o festival regressou, por iniciativa do então presidente da Câmara Municipal de Caminha, Pita Guerreiro, novamente com organização de Barge, apoiado pela mulher. “Entre armar e desarmar barracas, colaborei sempre em tudo”, lembrou Amélia à VISÃO.

Na segunda edição do Vilar de Mouros, em 1982, tudo foi diferente. “Houve muitas infiltrações e sabotagens, porque já se notava uma luta entre o espírito inicial de Vilar de Mouros e um lado mais comercial que, anos mais tarde, prevaleceu”, declara Vitorino de Almeida, um dos três diretores artísticos do festival nesse ano. “É como comparar um ciclóstomo a um mamífero”, acrescenta. O festival de 1982 durou nove dias seguidos, com rock, folclore, música erudita, fado, poesia… Para a História, além de novo o prejuízo financeiro, ficaria também a estreia dos irlandeses U2 em Portugal, perdidos num cartaz de luxo que incluía The Stranglers, A Certain Ratio, The Durutti Column, Sun Ra ou Echo and The Bunnymen. Vilar de Mouros regressaria novamente em 1996, pela mão da promotora Música no Coração, que o realizou ininterruptamente entre 1999 e 2006. Não fosse a pandemia, a festa seria novamente rija por estes dias. Vilar de Mouros vai celebrar 50 anos, já neste sábado, 28: atuam os Bunny Kills Bunny e a Banda do filme Variações, que homenageia o legado de uma das maiores figuras da música dos anos 80, com David Fonseca como cabeça de cartaz. E Rui Pregal da Cunha e Paulo Pedro Gonçalves, cofundadores dos Heróis do Mar, revisitarão, em modo Live DJ set, temas marcantes da história do festival na aldeia minhota que entrou para a História como sinónimo de liberdade.

Memórias recuperadas

Filipe Bonito, criador do projeto Sombras de Alguém, dedica-se aí à descoberta e à publicação de fotografias anónimas e antigas, recuperadas a partir de rolos antigos. “Ao longo dos anos, comprei várias câmaras e muitas delas ainda continham um rolo no interior. Descobri também conjuntos de negativos. Percebi que havia algo de mágico em trazer ao mundo imagens nunca vistas e que ficariam perdidas”, explica à VISÃO. É o caso das imagens inéditas reveladas neste artigo, descobertas no meio de negativos encontrados na Feira da Ladra. Quando foram publicadas no site, suscitaram especulação sobre onde teriam sido captadas… até que um seguidor conseguiu identificar a primeira edição do festival Vilar de Mouros, a partir de uma capa da revista Mundo da Canção. A funcionar desde 2013, são publicadas “quase diariamente” duas ou três fotografias, sem ordem ou legenda, no site Sombras de Alguém. “São as pessoas que acrescentam os locais, as situações, assim participando no processo de descoberta”, esclarece Filipe. E estas recordações a preto-e-branco do primeiro festival Vilar de Mouros reavivaram memórias: “Fui contactado por alguém que se reconheceu, em criança, nas fotografias tiradas por uma tia.”

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