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Morreu Ryuichi Sakamoto (1952-2023), um japonês em Nova Iorque com um fraquinho pela bossa nova

Depois do 11 de Setembro de 2001, viveu “um mês de pânico.” Com 50 anos, o músico olha à volta, a partir de Nova Iorque, e não encontra facilmente um sítio seguro para se refugiar. Lá para o final de Agosto, chegará às lojas um disco muito especial. Chama-se Casa e foi gravado integralmente na casa de Tom Jobim, no Rio de Janeiro, durante cinco dias de 2001. Sakamoto tocou no piano de Jobim, Jacques Morelenbaum acompanhou-o ao violoncelo e Paula Morelenbaum cantou 16 temas do mestre brasileiro. De passagem por Lisboa, para promover esse disco, Sakamoto fala da sua obra e de muito mais.

VISÃO: Lembra-se de quando ouviu, pela primeira vez, Tom Jobim?

RYUICHI SAKAMOTO: Quando tinha 11 ou 12 anos, provavelmente, no Japão. Por volta de 1965, houve um grande boom de bossa nova, no Japão, que começou nos músicos de jazz japoneses. Nesse tempo, toda a gente estava louca com a bossa nova. Eu próprio formei uma banda de bossa nova, com os meus colegas de liceu – foi a minha primeira banda. Desde aí, sempre ouvi Tom Jobim, acompanhei sempre o seu trabalho, e o de João Gilberto também. Mas foi já depois de chegar a Nova Iorque que me aproximei mais da música brasileira. Conheci Arto Lindsay, que me apresentou ao Caetano [Veloso], a Marisa Monte. .. Depois, em 1992, Caetano foi tocar a Nova Iorque, com Jacques [Morelenbaum] na banda, eu achei incrível a maneira como ele tocava, fui ao back stage e pedi ao Caetano para me apresentar ao Jacques. Em 1996, estive com o Jacques e o Caetano em São Paulo e no Rio, e tivemos a sorte de ir visitar a casa de Tom Jobim, num anoitecer muito bonito; lembro-me dos pássaros a cantar e do som do vento. Logo nessa altura, pensei como seria fantástico gravar música naquela casa. Toquei nos pianos, eram dois, de Jobim – e vi as pautas que lá estavam: uma de Chopin, outra de Debussy. A experiência dessa noite é que desencadeou o projeto do disco Casa.

Consegue descrever a sensação de tocar no piano de Tom Jobim, de alguém que admirava tanto e há tanto tempo?

As marcas dos dedos de Tom Jobim nas teclas impressionaram-me muito. Mas só estavam nas escalas do meio – ele não necessitava de mais para compor as suas músicas, precisava de poucas notas. De uma nota só [risos]. Para mim, olhar para essas marcas fez-me pensar no sudário de Jesus… Foi difícil, de início, tocar naquelas teclas, pôr os meus dedos nas marcas dos seus dedos. Parecia algo de proibido! Não era um grande piano, um Yamaha Mini Grand, está longe de ser um piano de topo, mas tem um timbre muito particular.

Era possível esquecer que estava a tocar no piano de Tom Jobim ou sentia sempre esse peso?

Sim, às vezes esquecia-me de que estava a tocar num piano especial. Por outro lado, sempre que tocava uma nota, ela soava diferente de todos os outros pianos em que toco, e isso não me deixava esquecer totalmente. Mas quando se chega a uma certa fase, esquecemo-nos, de facto, do instrumento que estamos a tocar, qualquer que ele seja, porque ele toma-se uma parte do nosso corpo.

O que o trouxe agora a Lisboa?

Estou aqui para promover esse disco, Casa. Mas, de algum modo, foi planeado vir enquanto o Caetano Veloso estava aqui em concerto. Ele não sabia que eu vinha, por isso foi uma grande surpresa encontrar-me aqui, em Lisboa, no Coliseu, depois do primeiro concerto, nos bastidores, à sua espera, com uma garrafa de champanhe.

E, há algum tempo, esteve em Portugal para gravar…

Ah, sim, foi no ano passado, julgo que em março. Num estúdio fora de Lisboa, de um cantor português, Paco Bandeira. Isso foi integrado num projeto para ajudar a acabar com as minas terrestres: Zero Landmine. Estive em Moçambique, onde gravei com alguns músicos moçambicanos e depois vim a Portugal onde gravei com o Waldemar Bastos para esse mesmo disco. Ele tem um restaurante muito simpático aqui em Lisboa; foi bom estar cá. Tive mais projetos que quis realizar em Portugal. Depois do disco BTTB, em 1999, escrevi a minha primeira ópera: Life. E quis mesmo vir aqui, antes, para ter algumas ideias, porque adoro Lisboa, apesar de nunca cá ter passado muito tempo. Infelizmente não foi possível. E a acústica da sala onde toquei no Porto, em 1998, o Coliseu, foi provavelmente a melhor, ou das melhores, que já experimentei. Então, fiquei com vontade de gravar aí um disco, ao piano. Mas nunca passou de mais um projeto…

O projeto Zero Landmine correu bem?

Era uma peça musical de cerca de 20 minutos. Pedi a músicos de todo o mundo para contribuírem. Era como uma viagem musical, do Alasca a África, passando pela Ásia, em 20 minutos. [David] Sylvian escreveu as letras e cantou algumas partes, Brian Eno enviou-me algum material, os Kraftwerk também, e houve vários cantores japoneses a participar. Depois, tivemos um programa de televisão, no Japão, sobre esse tema. Foi um grande acontecimento, resultou muito bem. Vendemos cerca de um milhão de cópias, no Japão. Todo o dinheiro foi para uma Organização Não Governamental inglesa, a HALO, especializada em operações de desminagem em todo o mundo: Moçambique, Angola, Afeganistão, Cambodja… Agora, continuamos a anunciar como o dinheiro desse projeto tem sido utilizado, duma forma precisa. É assim que o projeto ainda continua, porque acho que é muito importante dizer às pessoas como está a ser gasto o dinheiro. Nessas campanhas, fica sempre uma certa dúvida sobre o que se vai fazer ou não… É preciso mostrar o que está a acontecer com o dinheiro.

Como é que um japonês a viver em Nova Iorque tem visto este Mundial de Futebol [o Mundial de 2002 foi disputado na Coreia do Sul e no Japão]? O seu coração tende mais para os Estados Unidos ou para o Japão?

Seria um pesadelo se os Estados Unidos tivessem chegado à final. Porque nenhum americano se preocupa minimamente com futebol, eles nem sabem o que se está a passar. O resto do mundo está louco com tudo o que acontece no Mundial, só na América ninguém quer saber disso. Portanto, eu não torcia nada pelos Estados Unidos, nem pensar! Fiquei realmente emocionado com a participação dos coreanos. Portaram-se muito bem.

Mas há uma grande rivalidade entre japoneses e coreanos, não é?

Claro, todos os coreanos queriam que o Japão perdesse rapidamente. No jogo Coreia-Itália, havia cartazes no estádio a recordar que a Itália tinha sido aliada do Japão, na guerra. Ainda se lembram! Os japoneses esquecem mais depressa o passado. Essa rivalidade é mais da Coreia com o Japão do que o contrário. Porque, afinal, eles é que foram colonizados pelos japoneses… Agora estou a torcer pelo Brasil.

E, como nova-iorquino, como viveu o 11 de Setembro de 2001?

Foi um acontecimento muito importante para mim. Estava em casa, em Manhattan, e ouvi o primeiro estrondo. Depois de perceber o que estava a acontecer saí para a rua, de máquina fotográfica na mão. Mesmo olhando com os meus olhos para o World Trade Center em chamas, eu não acreditava no que via. Parecia tudo tão irreal, tão surreal… Enquanto olhava para o edifício a arder, pensava em muitas coisas, sobretudo “quem fez isto?”. E a primeira coisa que me veio à mente foi: Bush fez isto! Eu nem devia estar a dizê-lo, mas foi mesmo a primeira coisa em que pensei. Fiquei aterrorizado por pensar que poderíamos estar a assistir ao abrir de uma caixa de Pandora. A seguir àquilo, ninguém se importaria se se usassem armas nucleares. Parecia-me um pesadelo. Depois, além de tentar recolher o máximo de informação sobre o assunto, passei uns tempos à procura de máscaras antigas, medicamentos para o Anthrax, muita água, reservas de passagens aéreas (já seria demasiado tarde, mas tê-las dava-me alguma segurança mental)…

Entrou em pânico?

Sim, estive em pânico durante cerca de um mês. Comprei um carro, comprei um telemóvel para o meu filho que tem 11 anos, porque temíamos que pudesse acontecer alguma coisa na escola. Tentei ter tudo preparado. Dormia com o meu passaporte e os vistos prontos na carteira. Nova Iorque tomou-se mesmo numa espécie de cenário de guerra, nesses dias. E ainda hoje, qualquer coisa pode acontecer, a todo o momento. Eu pensei seriamente em sair de Nova Iorque e mudar -me para outro sítio qualquer. Mas apesar de pensarmos muito no assunto, não conseguimos arranjar uma boa resposta para a pergunta: “Para onde ir?”. Todo o mundo é perigoso, não há sítios seguros.

Mesmo agora, sente que a cidade mudou depois do 11 de Setembro?

À superfície está tudo estranhamente calmo. As pessoas reagiram, para mostrar força, e aparentemente voltou-se à normalidade. Mas mentalmente estão profundamente traumatizadas. A América está a tomar-se muito militarizada – fala em bombardear o Iraque, em Guerra das Estrelas, armas nucleares, tudo isso… – porque, no fundo, se sente muito fraca. Os cães pequenos mordem mais do que os cães grandes. Temos que mostrar mais a nossa força quando estamos mais fracos. É um pouco insano, mas é o que se passa. Afinal, não se conseguiu evitar um ataque feito com x-atos e pequenas facas, que se pode repetir. A América sente-se fraca e traumatizada.

E ainda se sente isso nas ruas?

Sim. Passa-se uma coisa estranha. Nos Estados Unidos, as pessoas adoram conversar e discutir sobre tudo. Mas, desde o 11 de Setembro, não se ouvem mais discussões nem conversas sobre o assunto, o que para mim é um sinal horrível. Noventa por cento dos norte-americanos apoiaram Bush, a oposição foi mínima. Mesmo em Nova Iorque, que é diferente de todo o resto da América, discute-se muito pouco, hoje. Pouquíssima gente participou em manifestações antiguerra. É muito triste ver isso. Onde estão todos os hippies e estudantes que protestavam contra a guerra, nos anos 60? Desapareceram.

Depois desse pânico inicial, mudou mesmo alguma coisa no seu quotidiano?

Eu acho que o pior ainda está para vir. O 11 de Setembro foi só um gatilho. E agora há muitos países a virar à direita; o que assusta é que basta os governos dizerem “eles são terroristas!” para poderem fazer o que querem. É assustador. Para mim, a situação vai tomar-se pior a cada dia. Por isso, ainda continuo a perguntar-me: para onde ir?

E…?

Talvez para um sítio selvagem, perto da Natureza. Nos últimos três anos, estive várias vezes no Quénia. E adorei as pessoas, as paisagens, os pássaros, tudo… Pode ser uma hipótese. Em Moçambique, as pessoas são simpáticas, mas é um país muito pobre, é difícil viver lá. E ainda tem muitas minas enterradas, cerca de 2,5 milhões!

Acredita nas teorias que preveem o grande crescimento da Ásia e a decadência dos Estados Unidos?

Desde o início dos anos 90, o verdadeiro inimigo dos Estados Unidos tem sido a China. E talvez os americanos tenham razão para ter medo, porque a economia chinesa está a crescer muito depressa… Por tudo isto é que a América tem tentado fazer acordos com os japoneses, para enfrentarem juntos o poder da China. A Coreia do Sul e o Japão são, para os EUA, como uma base militar gigante contra a China. Os assuntos internacionais estão a tomar-se tão assustadores e perigosos… É melhor nem falar sobre isso.

Mudemos, então, de assunto. No plano artístico. Nova Iorque ainda é a grande capital das vanguardas?

Talvez. Não sei responder, porque não saio muito.

Porque vive em Nova Iorque, então?

Sim, estou a perder as razões para estar em Nova Iorque, é verdade. A única grande razão por que ainda vivo lá é o meu filho mais novo, que está numa boa escola, que ele adora, onde tem muitos amigos. Tenho mais três filhos, mas esses já estão grandes (com 28, 25 e 21 anos).

Já não está ligado à vanguarda nova-iorquina, se é que ainda existe?

O auge, a nível musical, com pessoas como John Zom ou Arto Lindsay, foi no início da década de 80. Depois, foi arrefecendo. Durante essa década, morreram muitas pessoas, com SIDA, desapareceram muitos artistas talentosos. Quando me mudei para Nova Iorque, em 1990, essa cena já estava muito mais calma. Agora, apesar de não sair, mantenho-me em contacto com algumas pessoas: o DJ Spooky, por exemplo, ou o Arto [Lindsay]…

Está interessado nas novas músicas electrónicas?

Não me interessam assim tanto, em geral. Mas o DJ Spooky faz algumas coisas interessantes, sim. Às vezes, ele agarra-me e leva-me a algum clube… Mas o problema maior é que eu me deito por volta da meia-noite e o momento mais interessante, nesses clubes, é por volta das 5 da manhã… Levanto-me, normalmente, por volta das 6h30, 7 horas, para levar o meu filho à escola. Outra razão por que saio muito pouco é que já o fiz demasiadas vezes antes. Costumava sair seis noites por semana, exceto aos domingos, e voltava quase sempre para casa às 7h, ou às 9h ou às 11h… Depois, levantava-me por volta da uma da tarde. Andei a viver assim durante cerca de 20 anos. Foi demasiado. Agora, gosto da sensação de me levantar cedo, parece que passamos a ter mais tempo.

Está a gostar de ter 50 anos?

Sim. É bom ter 50 anos. Parece um slogan!

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