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José Cardoso Pires: A vida do génio boémio e a sombra de Saramago

Cenas de pugilato e cabeçadas à Cais do Sodré? José Cardoso Pires foi protagonista de várias, como esse murro nos queixos dado ao crítico Renato Ribeiro em pleno Chiado, porque este chamara de “execrável” um dos contos do seu segundo livro, Histórias de Amor (1952). A rivalidade literária entre o autor dos romances Balada da Praia dos Cães e Alexandra Alpha e José Saramago, escrutinada em Integrado Marginal – Biografia de José Cardoso Pires (Contraponto), foi mais jogo de xadrez do que pas de deux de boxe, mas marcou as lutas da literatura portuguesa contemporânea e a sua transformação de região periférica em País produtor de autores lidos em todo o mundo.

O seu autor, Bruno Vieira Amaral, investiu três anos a construir este ambicioso volume dedicado a um dos mais virtuosos e superlativos ficcionistas portugueses. Com leitura fluida, pontuado de “ganchos” a criarem a vontade de ler mais, o livro retrata com vigor o panorama político e social da época, abarcando momentos-chave como a campanha de Humberto Delgado, o processo das Três Marias, a crise académica, o 25 de Abril, a entrada na Comunidade Europeia. É também uma expedição reveladora aos bastidores literários, aos “grupos, grupinhos e grupelhos” do meio literário como lhes chamou o poeta José Gomes Ferreira. Mas tudo palpita em torno do urbano convicto nascido na aldeia, o filho de beata que rejeitou a religião, o antifascista que nunca foi preso, o boémio que preferia os copos aos colóquios, o marialva que desmontou o marialvismo, o autor minucioso da luta corpo a corpo com o texto, o homem que regressou da morte, o “Zé”.

Revisitações Cardoso Pires na Caparica, onde recebia amigos como Sttau Monteiro e O’Neill; jovem escritor fotografado por Eduardo Gageiro e acompanhado pelo inseparável cigarro

O pássaro que fugiu da gaiola
A família de José Cardoso Pires tinha árvore genealógica plantada nas Beiras, em São João do Peso, de onde o pai, José António Neves, saíra para trabalhar como marçano numa leitaria lisboeta, atravessando os tempos conturbados do Regicídio e da I República, e fazendo carreira na Marinha. A mãe, Sofia Cardoso Pires, tinha “temperamento dado a terrores bíblicos”. José Augusto Neves Cardoso Pires veio ao mundo na aldeia porque ela via Lisboa como uma “babilónia”; e, de facto, no dia do seu nascimento, a 2 de outubro de 1925, a cidade preparava-se para chuvas e febres tifoides. Mas havia filas à porta do Teatro Apolo para arranjar bilhetes para a peça A Galdéria, com Ilda Stichini… O futuro escritor cresceu como “passarinho fechado na gaiola”, com idas obrigatórias à missa. Sobrava-lhe o consolo das histórias contadas pelo pai, numa casa em que não havia livros. Na escola, as redações com termos raros fizeram-se notar, para ciúme do poeta Luiz Pacheco, amigo com quem criara um jornal artesanal no liceu chamado Pinguim.

O jovem Cardoso Pires trocará a “bolha pequeno-burguesa” em que crescera por um quarto de pensão e pela fauna da Almirante Reis de excluídos e “mânfios lisboetas que nada sabiam de literatura”. Aproxima-se dos círculos do MUD – Movimento de Unidade Democrática Juvenil. O pintor Júlio Pomar via-o assim: “Galaroz, pequenino, mãos nos bolsos, madeixa a cair na testa, galã de bairro.” José começa a escrever contos, influenciado por Hemingway (de quem teria uma imagem nas futuras casas), Erskine Caldwell ou Damon Runyon, o escritor que contava “coisas dos Arroios lá de Nova Iorque”. Sublinha o biógrafo que ele evitava as armadilhas do sentimentalista neorrealista – tinha uma “sintaxe citadina”. Em volta, o regime salazarista apertava o “cinto totalitário de ferro”. Quando Mário Soares e Júlio Pomar foram presos em 1947, Cardoso Pires e os amigos organizaram uma sessão de protestos. Presos pela PIDE e fechados numa sala de interrogatório, tiveram sorte caricata: “Um dos agentes era inquilino do pai de Cardoso Pires. Ao ver o filho do senhorio, perguntou-lhe o que andava para ali a fazer.” Foram todos para casa. Cinco anos mais tarde, o seu segundo livro de contos, Histórias de Amor, com descrições de “beijos húmidos” foi, caso único, proibido – mas o censor ajudou com sugestões…

Raridades Com Saramago; à esquerda, a denúncia à PIDE sobre a alegada imoralidade do livro Histórias de Amor; à direita, a carta enviada a Mário Dionísio pedindo opinião sobre o seu primeiro livro

Os ânimos inflamavam-se na tertúlia do Café Herminius, na Almirante Reis, onde Cardoso Pires era o único prosador, entre artistas plásticos como Cesariny ou Marcelino Vespeira, e poetas como O’Neill. À data, o neorrealismo era, simplifica Bruno Vieira Amaral, “gente nova”. Um dia, ao encontrar Alves Redol no Chiado, Cardoso Pires grita-lhe: “Não o conheço, mas você é o responsável pela literatura mais detestável que se publica.” O homem cujos livros, confessaria José mais tarde, o tinham feito chorar de emoção. Em 1947, a cumprir serviço militar em Vendas Novas, Cardoso Pires sonha é com o primeiro livro. Edição de autor, Os Caminheiros e outros contos (1949) arranca elogios. Aquilino Ribeiro, a quem ele ofereceu um exemplar, dá-lhe o conselho que nunca esqueceu: “Um bom escritor o que precisa é de orelhinha.” Mas aos 27 anos, ele tinha contas para pagar na casa com Edite, estudante de enfermagem a quem pedira em casamento uma semana depois de se conhecerem. José colabora com a revista Eva, e fará sempre vida de jornais (no futuro, Fernando Assis Pacheco haveria de lhe chamar “a vírgula mais cara da imprensa”). Fundou várias editoras (com Vitor Palla criou fascículos de luxo nas Edições Artísticas Folio) e alinhou em projetos como o irreverente Almanaque (suportado pelo infatigável Figueiredo Magalhães) em cuja ficha técnica não aparecia para fugir ao radar da PIDE. Apesar disso, em maio de 1960, o seu nome surgira num interrogatório e o escritor debanda para Paris, e depois para o Brasil. Aqui, a sua chegada foi tudo menos discreta: o jornal Última Hora saudou-o na primeira página como o “maior novelista da sua geração”.

Consagração
Nas primeiras semanas de 1968, foi publicado O Delfim, romance em que o autor então com 42 anos investira sangue, suor e sete anos de trabalho. “Nenhum ficcionista português vivo escreve melhor do que José Cardoso Pires”, lançou o crítico Óscar Lopes. Alexandre Pinheiro Torres postulou que O Delfim condensava “tudo o que de positivo a nossa ficção inventou desde que existe”. E Mário Dionísio, figura tutelar a quem José pedira opinião sobre o primeiro livro, mencionou-o como “obra-prima”. Retrato da “agonia de um Portugal tradicionalista”, O Delfim foi o maior sucesso editorial do ano, tendo sido traduzido nas respeitadas Seix-Barral (Espanha), Gallimard (França) e Editora Civilização Brasileira (Brasil). Mas quando José Gomes Ferreira o vira meses antes no Café Bocage, um Cardoso Pires “acabrunhado” e de copo de conhaque na mão, confessara-lhe que não queria “reaparecer com um livro fraco”. Com quatro versões do livro já cumpridas, o escritor “sentia que era preciso reescrevê-lo”. Era o seu credo obsessivo: escrever, rasgar, sofrer, escrever melhor. Uma manhã de trabalho resultava em três linhas. Batista-Bastos descreveu-o exaurido da oficina de O Delfim: “Dedos mordidos pela nicotina de cigarros ininterruptos; um olhar quase imóvel numa cara de pau; barba cheia de brancas a contornar-lhe o beiço descaído; perfil de urubu da noite e uma fronte onde se adivinham cilícios da regra de não ler regra, que é a aventura de escrever sem se sair da vida.” E a amiga Maria Teresa Horta apontou-lhe uma “cicatriz de cansaço”.

Frases memoráveis

Numa obra tão vasta, numa figura tão interventiva, sobram muitas pistas verbais para inspirar. Eis três exemplos

“Uma das coisas que a mim me agradam e que eu gostaria de fazer era corromper o mais possível a língua. A primeira condição para escrever bem é saber gramática, a segunda é esquecê-la”

“A nossa crítica [literária] andou tantos anos enrolada em exorcismos semióticos e em tecnologias estruturais que morreu a falar sozinha”

“O nosso inconsciente político está carregado de obscurantismos que foram regra entre nós durante séculos. Complexos de inferioridade, fatalismos, álibis providencialistas… tantos resíduos, caramba!”

O Delfim seria, finalmente, “o” grande romance? Não é que lhe faltassem obras: a novela O Anjo Ancorado (1958), autópsia da burguesia e da Geração de 45, esgotara uma primeira edição em poucos dias. A Cartilha do Marialva (1960), ensaio sobre o machismo e o provincianismo lusos, servido numa edição de luxo (publicada na Ulisseia) fora uma pedrada no charco – e Cardoso Pires fora acusado de ser “um escritor para milionários”. José escrevera também uma peça de teatro, O Render dos Heróis, levada à cena em 1965. E o romance O Hóspede de Job (1967) vencera o importante prémio Camilo Castelo Branco. A sua proeminência enquanto escritor era assim assinalada, com graça ferina, no diário de José Gomes Ferreira: “Para celebrar a 2ª edição de A Cartilha do Marialva, o homem da publicidade da Ulisseia dependurou na barraca da Feira do Livro uma bela foto do Cardoso Pires a fazer festinhas pensativas no dorso de um gato curvo e familiar… Nostalgia de não haver forma de um tigre caber na fotografia de um escritor português!” O lançamento de O Delfim, com tiragem generosa de 5 500 exemplares pela Moraes Editores, dirigida por Alçada Batista, foi espetacular: um “verdadeiro happening para os padrões da Lisboa de então e inédito nos meios literários”, com catering de vinho tinto e pastéis de bacalhau no Foyer do Teatro Villaret, mais de 100 convidados vindos das artes, igreja, banca. “Os adversários, que tomavam nota dos uísques que bebia, registavam o investimento da editora. Como é que um escritor de esquerda não tinha vergonha daquele fausto? Seduzira-se pelos valores dessa narrativa?”

O detrator Saramago
Uma recensão publicada na revista Seara Nova usou de maior severidade: “Intromete-se constantemente (pelo menos assim nos parece) uma certa tinta de simpatia, um odor de saudade dos bons tempos antigos, como se em Cardoso Pires lutassem, qual de baixo, qual de cima, a sua opção de intelectual e a sua íntima natureza, numa complicada relação de amor-ódio, responsável pela ambiguidade patente na sua obra.” Assinava-a um crítico com um romance publicado há 20 anos, funcionário na Editora Estúdios Cor, assim descrito por Bruno Vieira Amaral: “Naquela altura, reconheciam-no em Lisboa pela boina à Che Guevara e a bolsa a tiracolo. Embora tivesse estabelecido uma certa reputação como crítico, o seu nome era absolutamente secundário no panorama literário em Portugal. Talvez por isso, José Saramago – assim se chamava o crítico – tenha desferido um violento ataque ao livro de Cardoso Pires e à posição deste enquanto intelectual comprometido, pondo em causa a sinceridade das suas propaladas convicções.”

Casebre de pescadores Cardoso Pires escreveu neste humilde recanto na Fonte da Telha a primeira versão de O Anjo Ancorado, em 1957 FOTO: Inácio Ludgero

Muitos anos depois, o Nobel português faria um mea culpa: “Apesar da minha inexperiência, e tanto quanto sou capaz de recordar, creio não haver cometido grossos erros de apreciação nem injustiças de maior tomo. Salvo o que escrevi sobre O Delfim do José Cardoso Pires: muitas vezes me tenho perguntado onde teria eu nesse momento a cabeça, e não encontro resposta…” José Saramago não frequentava as tertúlias e os bares por onde andava Cardoso Pires, fã de barmen, cliente da Cervejaria Ribadouro, “a universidade do tremoço” onde se encontravam “chulos do Parque Mayer a atacarem o fastio na perna da boa santola”, galadores de coristas, “mestres-de-obras a arrotar”. Ou da Cova do Galo, casa de má fama onde, certa vez, ele arremessou um sujeito para cima do piano. Sublinha o biógrafo, faltava-lhe a “paciência para o patoá pomposo”, para o “já dizia Dostoievski”.  

Em comum, os dois Josés tinham a mesma escolinha de infância no nº 14 do Largo do Leão, e as origens aldeãs. Mas, ao contrário de Saramago, orgulhoso das raízes rurais, Cardoso Pires era um urbano convicto que detestava o “espírito de vigilância” da aldeia.

Reviravoltas
Em 1982, foi anunciada a criação de vários prémios literários no II Congresso dos Escritores Portugueses, incluindo o Grande Prémio de Novelística destinado a galardoar um livro publicado em Portugal no ano anterior. O valor pecuniário era uma fortuna: 750 contos (o salário mínimo nacional era de 15 contos). Vergílio Ferreira batizou-o, jocosamente, de El Gordo, numa alusão à lotaria espanhola. Os favoritos eram dois escritores muito diferentes. Um era já autor excelentíssimo, famoso pela prosa enxuta, premiado com o Prémio Camilo Castelo Branco, professor no King’s College em Inglaterra, amigo de Norman Mailer e de Vargas Llosa, atormentado por depressões criativas, pai “bissexto” de duas filhas, mais uma vez a fazer esperar o novo editor (agora, José Carlos de Vasconcelos, diretor do Jornal de Letras e colunista da VISÃO) pelo novo livro: A Balada da Praia dos Cães, inspirado num assassinato real. O outro era José Saramago, saído do pousio de 30 anos, cujo Memorial do Convento não tivera a mesma atenção na imprensa. “Saramago já não era o homem de aspeto simples que a Lisboa intelectual conhecia do final dos anos 60”, lê-se. Dizia-se que da relação iniciada nos anos 70 com a escritora Isabel da Nóbrega, ex-companheira do poderoso crítico Gaspar Simões, “nascera um novo Saramago”. E um valor literário fortíssimo no pós-25 de Abril: Levantado do Chão, romance sobre a luta do povo alentejano, e Viagem a Portugal, encomenda que lhe permitira viver da escrita, tinham-no tornado visível. Memorial do Convento elevara-o a novos cumes. 

Biblioteca essencial

O Anjo Ancorado 1958
Relato de uma viagem de recreio a Peniche, protagonizado pelo citadino João e por Guida (rapariga com metade da sua idade), revelava a mão de contista exímio de Cardoso Pires. Segundo este, era “uma porrada em certo tipo de burguesia de esquerda”, a da geração de 45, a sua, no fundo conservadora.

O Delfim 1968
O livro introduziu inovações na prosa de Cardoso Pires, como o relato na primeira pessoa, os saltos temporais. Abre com um regresso do engenheiro Tomás Palma Bravo à sua propriedade, na aldeia da Gafeira, onde encontra a mulher afogada na lagoa da propriedade. Era o retrato da “agonia de um Portugal tradicionalista”.

Balada da Praia dos Cães 1982
Durante anos, Cardoso Pires não quis avançar com este romance inspirado no assassínio real do capitão Almeida Santos na praia do Guincho, para não atrair censuras da PIDE. Cardoso Pires pensara em fazer um romance-reportagem, à la Truman Capote ou Norman Mailer; o romance transforma-se num veículo para análise social.

De Profundis, Valsa Lenta 1997
Notável conjunto de crónicas inspiradas na experiência da morte branca trazida pelo AVC que o escritor sofreu; este temia trazer uma experiência mais sentimental à escrita. O resultado foi uma obra-prima profundamente pessoal, subjetiva, que obrigou Cardoso Pires a confrontar a morte nos olhos.

“A relação entre os dois era de uma cordialidade que nem a crítica que Saramago fez a O Delfim prejudicou”, assegura Bruno Vieira Amaral. Cardoso Pires afiançara, em entrevista, não ter ficado magoado: “Tive uma crítica de um tipo que é sério, que é bom homem, o Saramago. Ficou lerdo com o livro, perdeu a cabeça (…)” E foi ele que sugeriu o nome de Saramago para diretor-adjunto do Diário de Lisboa. “Mas se não havia animosidade real, a história de uma rivalidade entre ambos era boa demais para não ser fomentada quando os seus romances disputavam o maior prémio literário de sempre em Portugal”, refere o biógrafo. Cardoso Pires achava Memorial do Convento, com um “barroquismo e uma opulência que se opunha ao rigor frugal da sua prosa”, um romance “com cenas notáveis, mas desequilibrado”. A batalha no júri era feroz, coscuvilhava-se. No dia do anúncio, Cardoso Pires foi acalmar os nervos a ver Do Fundo do Coração, de Francis Ford Coppola, na salinha do Apolo 70. Quando se soube que Balada da Praia dos Cães vencera, ouviu-se um “murmúrio desdramatizante e aprovador” na sala cheia de jornalistas. E logo houve quem sugerisse ao vencedor Cardoso Pires que o prémio devia ser para trocar o seu velho Mazda “desconjuntado”. Dívidas e impostos atrasados estavam primeiro, retorquiu. Mas em casa, abriu-se um vinho oferecido por Alves Redol há 30 anos. 

As benesses do galardão “puseram sal nas feridas” dos que achavam Saramago injustiçado, mesmo quando este ganhou o prémio PEN semanas depois. Natália Correia declarou que comparar os dois romances era “comparar um Opel a um Mercedes”, o jornalista Francisco Sousa Tavares aventou na imprensa sobre “prémios com destino prefixado”, o crítico Augusto M. Seabra viu influências de marketing feito por O Jornal em prol da Balada… “Entre os dois escritores, que nesse ano de 1983, desceram juntos a Avenida da Liberdade nas comemorações do 25 de Abril, o prémio transformou-se no elefante na sala”, lê-se. Uns dias depois, quando os dois Josés se encontraram num jantar com o Nobel colombiano Gabriel García Márquez no restaurante Brasuca, no Bairro Alto, “uma fria reserva” testemunhada por Lídia Jorge instalara-se entre ambos.

Caparica O escritor, que gostava de “encher-se de sal e de iodo”, fez da Costa cenário dos contos, Week End e Uma Simples Flor nos Teus Cabelos, no livro Histórias de Amor FOTO: Gonçalo Rosa da Silva

Outro astro ascendia no panorama literário: o jovem António Lobo Antunes que Cardoso Pires via como “o irmão que perdera há mais de 30 anos”. “Quem os conhecia dizia que ‘antes de se tornarem amigos não suportavam os livros um do outro’”, conta Vieira Amaral. Entre 1979 e 1983, Lobo Antunes somava já cinco romances publicados. E Saramago lançara O Ano da Morte de Ricardo Reis. Cardoso Pires, mestre da frase sem gorduras, capaz de “escrever dez versões de um livro até encontrar o tamanho e o tom certos”, perdia terreno. Certo dia, de visita a José Carlos de Vasconcelos, o escritor viu umas provas do JL a destacar um romance de Saramago. Cardoso Pires queixou-se: “Porra, pá, tu és meu amigo e meu editor e só falas deste gajo.” Alexandra Alpha sairia cinco anos depois, mas o acolhimento foi morno, alguns acusando uma “mudança de visual” da escrita. O romance foi lançado no Brasil ao mesmo tempo que O Ano da Morte de Ricardo Reis. E se em Portugal a rivalidade entre Saramago e Cardoso Pires era “comentada em sotto voce”, além-Atlântico os média brasileiros alardeavam que Saramago fora o primeiro a romper o tabu de que “autor português não vende no Brasil”.

Foi num telefonema do baiano Jorge Amado que soube ter vencido o prémio União Latina. Mas foi José Carlos de Vasconcelos a contar-lhe que quem o propusera ao galardão fora… José Saramago. Os dois escritores mantinham uma relação “respeitosamente fria”. Saramago, casado com Pilar del Rio, era um “escritor profissional”. “Quando participavam juntos em alguma iniciativa, em Portugal ou no estrangeiro, chegava mesmo a perguntar a Cardoso Pires se já lhe tinham pagado.” Cardoso Pires tinha menos paciência para autógrafos e conferências, contava outras proezas aos amigos: “Dei-lhes cabo do minibar.” A jornalista Clara Ferreira Alves, amiga de ambos, conta que “a boa estrela” de Saramago, a sua felicidade, “irritava imenso” Cardoso Pires. Já o velho amigo Luiz Pacheco disparava: “Cada êxito do Saramago, ou prémio, o Cardoso Pires emborca três garrafas de uísque [Risos]. Eu sei, escuso de ver. Deve ficar com uma penca enorme. Deve ter uma inveja do Saramago!”

7 curiosidades

Memórias
Nascido na aldeia em São João do Peso, na Beira Baixa, urbano convicto, ele nunca esqueceu o odor “a estrume, vindo das hortas e das ruas onde se aliviavam as bestas”. Era “o cheiro da infância”.

Desalinhado
No Liceu Camões, José sentiu-se oprimido perante as fardas e os cumprimentos de braço estendido, “à maneira fascista, como se tivessem sido privados de voz”. Foi o pai que deu uma “palavrinha” e o salvou da Mocidade Portuguesa. 

Marinheiro
Em 1945, Cardoso Pires embarcou, como praticante de piloto sem curso, no cargueiro Sofala, em direção a Timor e a África. Desiludido com a realidade a bordo e desafiado por um desconhecido num bar “sórdido”, desertou. Mas a expulsão da Marinha deu-se porque, no regresso, atirou uma ventoinha à cabeça de um imediato, por razões de saias.

Esquecido 
A Esta Hora foi o seu primeiro conto publicado, na revista Afinidades, em abril de 1946. A história de um homem esfomeado que tenta, sem sucesso, empenhar um relógio nunca saiu em nenhuma antologia.

Camaradas
Cardoso Pires entrou para o PCP pela mão do poeta e pintor surrealista Cesariny. Em pleno 25 de Abril, no Largo do Carmo, decidiu desvincular-se do partido.

Assalariado
Foi tradutor de policiais da Coleção Vampiro, intérprete numa companhia de aviação (usava uma farda azul a que descosia os galões das mangas, prendendo-os com molas, para usar um “fato à inglesa” fora do aeroporto), e publicitário (criou a frase: “a camisa do homem que a mulher prefere”).

Alcunhas
Eram um hábito: à mulher Edite, chamou “Esquilo”; à mãe, beata vestida de negro, “Carocha”; a filha Ana era a “Rata Sábia”.

“Que tentou responder literariamente a esse novo contexto, que não lhe era favorável, prova-o a força com que se lançou a Alexandra Alpha e o muito que investiu nesse livro. O fraco retorno, na frieza da crítica e no reduzido alcance internacional, que o seu romance ‘maior do que a vida’ lhe trouxe, foi um golpe duro. Não voltou a escrever nenhum romance e ficou a assistir das bancadas à disputa entre Saramago e Lobo Antunes”, diz à VISÃO Bruno Vieira Amaral.

Numa quinta-feira de 1995, o escritor descobriu-se perdido. Antes de irem para o hospital, Edite encontrou-o a pentear-se com uma escova de dentes. Dez dias depois do AVC, José regressa a casa e transforma a experiência numa obra-prima: De Profundis, Valsa Lenta. A fama abraçou-o como nunca. “Eu senti-me o Prémio Nobel”, impressionou-se José. Este era o ano em que se falava num possível Nobel da Literatura para a língua portuguesa: ou Saramago ou Lobo Antunes. José, 72 anos, grande escritor português, estava fora – haveria de dizer que tinha também que ver com as traduções. Mas prémios, chegavam-lhe às catadupas: Prémio Pessoa 1997, Grande Prémio Vida Literária APE, Prémio da Crítica da Associação Internacional de Críticos, Prémio D. Diniz. No dia em que ganhou o Prémio Bordalo de Literatura, sofreu um segundo AVC: sequelas, fala afetada, pernas numa cadeira de rodas. A Edite, dizia: “Só tenho medo é de ficar na História como um fulano que escreve bem.” No regresso à urgência, fica num estado vegetativo irreversível. E o grande José Cardoso Pires parte no mesmo outubro em que é anunciado o único Prémio Nobel da Literatura português: José Saramago.

O “amigo” informador da PIDE

A leitura dos arquivos da polícia política no pós-25 de Abril deixou o escritor português em choque: aí, revelou-se-lhe uma traição inimaginável

Habituado a olhar por cima do ombro, José Cardoso Pires tinha consciência dos mil olhos e ouvidos da ditadura. Sabia-se um alvo, dada a sua atividade política exercida desde os tempos do MUD Juvenil, a sua ligação ao Partido Comunista (onde usava o pseudónimo Nunes), as reuniões secretas, os horários suspeitos, os círculos contestatários. Em casa, havia regras rígidas: nada de longos telefonemas nem nomes, nem de confiar em taxistas e porteiras, todos informadores da PIDE. Edite não lhe fazia perguntas. “Só quando a saída era mais arriscada é que avisava a mulher e lhe dizia o que fazer caso ele não aparecesse até determinada hora”, conta Bruno Vieira Amaral. Que recorda esta manobra de diversão: “Anos antes, escapara a ser detido durante uma ação de distribuição de panfletos num cinema organizada pelo PCP porque comprou dois bilhetes em vez de um e, depois de lançar os panfletos com as luzes apagadas, foi para o outro lugar.”

Mas a PIDE perseguia-lhe a sombra, mais rente do que ele imaginava. “A polícia política estava a par de todos os seus movimentos, chamadas telefónicas, contactos, conversas em ambiente familiar.” Sabiam onde morava, onde trabalhava (Editorial Gleba, Ulisseia), a sua ligação aos corpos gerentes da Sociedade Portuguesa de Escritores e ao PCP. Cardoso Pires era “um dos vértices da rede de um informador” que passava informações sobre todos os seus próximos: Salgado Zenha, Manuel Gomes, Alves Redol, Alexandre O’Neill, Carlos de Oliveira, Aquilino Ribeiro, Maria Lamas, João Abel Manta, Victor Palla, João Pulido Valente… José era identificado como “fonte de informação da política e sociologia atuante no sector intelectual do PCP; transmissor de livros proibidos, manifestos de intelectuais e de publicações públicas e particulares de órgãos de partidos comunistas estrangeiros ou de intelectuais portugueses”. O nome de código do informador? Gabriel.

Logo após o 25 de Abril, Cardoso Pires, integrado na Comissão de Libertação dos Presos Políticos, acedeu finalmente ao conteúdo do seu processo na PIDE. E descobriu que por trás de Gabriel estava um dos seus melhores amigos: José Pérez Féria, companheiro de infância, colega no Liceu Camões, seu afilhado de casamento. O mesmo José Pérez Féria com quem ele partilhara tarefas no MUD e nas campanhas presidenciais de Norton de Matos e de Humberto Delgado, e com quem distribuíra panfletos à socapa. O amigo muito lá de casa que ouvira todas as suas conversas. O estimado Pépito que vendera o seu sobretudo para ajudar José Cardoso Pires a recolher dinheiro para a edição de autor do seu primeiro livro, Os Caminheiros e Outros Contos, em 1949. 

Uma nota registava que Pérez Féria “colaborava a medo pelo facto de ter sido apanhado” no final da década de 1950 – e que recebia pela tenebrosa tarefa 2 500 escudos mensais. Cardoso Pires, um dos poucos do setor intelectual do PCP que nunca foram presos, teve de justificar-se à comissão: teria recebido proteção? Desconhecia que o grande amigo era assalariado da PIDE? O escritor ficou desnorteado: ele, que tomava tantas cautelas, que se “gabava de farejar os ‘pides’”, não dera pelo pior dos colaboradores do regime, o “bufo”, sentado à sua mesa? Cardoso Pires afogou a desilusão na bebida. Mas, em entrevista ao jornal Signo, em 1988, numa rara alusão à traição, confessaria ainda: “Estou muito traumatizado.”

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