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Visão | Vera Lagoa: A Endiabrada

“Aí vem a D. Vera!”, o aviso corre de boca em boca. No Mercado do Bolhão, Vera distribui exemplares do seu novo jornal e as mulheres rodeiam-na e oferecem flores “à mulher que fala claro e em linguagem simples e inteligível. Diz verdades, dá, corajosamente, a cara pelo povo”.

Assim seria lançado o jornal O Diabo no Porto.

Mas como é que um jornal do “reviralho” fora parar, em 1976, às mãos de Maria Armanda Falcão [nome de nascença]?

Após o saneamento do Diário de Notícias, em abril de 1975, o chamado “Grupo dos 24”, formado pelos jornalistas saneados, procura fundar órgãos de imprensa independentes do poder político para combater os periódicos que mais não faziam do que promover a “unicidade” da mensagem do Partido Comunista e da extrema-esquerda. Entre estes 24 jornalistas estava um pequeno grupo, de que faziam parte Carlos Martinho Simões, António Ramos, Navarro de Andrade, Rui Tovar e Rui Romano, que propõem a Vera Lagoa fazer um semanário. A cronista, descontente com a situação em que se encontrava no Tempo, aceitou o repto. Miguel Alvarenga, um estagiário à época, explica: “Formou-se uma equipa, de que o Carlos Martinho Simões era o chefe de redação, havia vários jornalistas e dois miúdos estagiários: era eu e o Valdemar [sic] Paradela de Abreu, sobrinho do Paradela de Abreu (editor). Entre janeiro e fevereiro [de 1976] tivemos várias reuniões em Lisboa com a Vera Lagoa, num escritório ali na Av. EUA, nem sei de quem era…”

Já o título O Diabo, Vera Lagoa foi buscá-lo… ao Partido Comunista.

Um jornal de combate
A história deste jornal começa no final do século XIX no Porto, sendo depois (re)fundado em 2 de junho de 1934, sob a direcção de Artur Inês. Nessa sua segunda série, nos anos 1930, O Diabo aderiu ao crescente movimento neorrealista e tem um cariz essencialmente artístico e literário, embora incluísse rubricas de política, economia e cinema. Os colaboradores são, na sua maioria, os intelectuais herdeiros dos ideais republicanos – gente de esquerda e/ou marxista – e que vão imprimindo ao jornal um cunho cada vez mais oposto ao regime, que o encerra em 21 de dezembro de 1940. O título pertencia, desde então, ao Partido Comunista, e a sua posse era renovada, periodicamente, pela mão “dedicada mas distraída” de Ventura Henriques: “Ainda bem que se distraiu, não renovando o título, o que lhe deve ter merecido não sei quantas moções de censura do democrata Álvaro Cunhal.” Como ela mesma afirma na entrevista que dá a Carlos Cruz: “O que prova que eles eram muito organizados, mas não tanto como pareciam… (…) Como sabe, todos os jornais têm de renovar os seus títulos quando não estão em ação. E eu sabia que expirava o prazo para essa renovação do título, no dia tal, e, no dia seguinte, às nove da manhã, ao abrir do Palácio Foz lá estávamos nós a tomar conta do título, O Diabo.”

Pena implacável Como cronista ou analista política, tinha uma escrita crítica e sempre mordaz. Afrontava sem medos e não perdoava ninguém

Dentro do grupo de pessoas que vai trabalhar com Vera Lagoa n’O Diabo, está Lígia Baltasar: “A Lígia era uma mulher salazarista e que, da primeira vez que apareceu ao pé da Vera Lagoa, não sei se levava um camafeu com a fotografia do Salazar ou se tinha uma fotografia de Salazar na secretária. [Vera Lagoa] chegou ao pé dela e disse-lhe: ‘Oiça lá, à minha frente, não! Você se quer trabalhar comigo ou tira a fotografia desse homem ou então…’ E a Lígia: ‘Então a Sra. que é tão liberal, tão democrata…?’, e a Vera Lagoa: ‘Está bem, mas isso aí guarda-o para você. À minha frente, não!’ Isto para mostrar que, quando quiseram fazer crer que ela era uma mulher saudosista do passado, que era fascista… não! Ela tinha um ódio, teve sempre um ódio ao Salazar…” Mas Lígia transformou-se no seu braço-direito e na pessoa em quem Vera Lagoa mais confiava.

O primeiro número do novo O Diabo sai no dia 10 de fevereiro de 1976, e a sua diretora aproveita para se congratular – como mulher, e tendo apenas a 4.ª classe – por aí ter chegado: “Cavalheiros! Parece-me que lhes vejo os narizes torcidos! Pois destorçam-nos que eu vou falar.” Assim começou O Diabo, no Porto, em 1895. “Assim começo eu em Lisboa, em 1976. Muita água correu sob as pontes até que fosse permitido a uma mulher como eu, sem passado literário, (apenas com um passado de luta), dirigir um jornal que foi sempre conhecido como um jornal de combate e de cultura. Para o combate, aqui estou eu. Para a cultura (além do combate, também evidentemente), aqui está quem neste jornal escreve.” E depois explica: “Sei que um antigo colaborador de O Diabo estranhou que eu tomasse o lugar. (…) Assim, parece tratar-se de receio da concorrência. Ora, parece-me que O Diabo, apesar das suas características de combate e cultura que pretende manter, não é uma coutada de determinados senhores. E a prova de que não é, aqui estou a dá-la.” Quanto às intenções do novo semanário, refere-as de seguida: “Pretendo eu e pretende toda a equipa deste jornal fazer, não só desta coluna, mas de todo o semanário uma tribuna em que se provoque a reparação de injustiças, em que se denunciem os que alguma coisa de criminoso escondem – mesmo que sejam todo-poderosos (sobretudo esses). Não enjeitaremos censuras. Assim como não enjeitaremos louvores. Basta merecê-los.”

Para escrever umas palavras nesse primeiro número são convidadas duas mulheres – Fernanda Leitão e Natália Correia. Em forma de carta aberta, os textos são elucidativos sobre o que se esperava do jornal e da sua diretora. Alertam-nos também, na perspetiva de cada uma delas, para os desafios que, como jornalista, Lagoa enfrentaria. Fernanda Leitão, refere que, ao folhear uma coleção de O Diabo dos anos trinta, no início do que ela apelida de “ditadura seminarista e celibatária”, pensa na pesada herança que Lagoa vai receber “e porventura nos ataques que vais sofrer por parte daqueles para quem, no passado, foste a presença na prisão, o beijo no tribunal, o disfarce para a clandestinidade. E não senti receio. Porque para esses chegas tu bem e, tivessem eles juízo, vinham às boas contigo para não irem de ventas à torneira. E não senti pena. Se lhes deres umas sarrafadas, estás a ser séria em contas – porque sabemos muitos (tantos, tantos) como te rasteiraram, até de portas adentro, aqueles finos rapazes que comeram à direita e digeriram à esquerda, responsáveis últimos, eles e só eles, desta cloaca de equívocos para que vai resvalando a vida portuguesa. (…) E tive medo. Sou, talvez, das poucas pessoas que ousam contrariar-te e dizer-te na cara o meu desacordo. E faço-o porque tenho encontrado no mundo pouca gente com uma tão linda e santa loucura como a tua.”

Desejando felicidades a Vera Lagoa, Fernanda Leitão prossegue: “Não faço a menor ideia de como será o jornal que vais dirigir. Não faço a menor ideia de quais e quantas ciladas te poderão armar os amigos, que são uns animais muito mais perigosos que os inimigos. Mal conheço os teus colaboradores. Mas há uma coisa que eu sei: és incapaz de uma sujeira ou de uma traficância. És incapaz de deixar de amar perdidamente, malucamente, à tua maneira, Portugal.” E termina num tom jocoso: “Estás a ouvir, oh rapariga? Avança, mas de olhos abertos. E, à semelhança dos rapazes que no século XVI foram à pimenta, seja o que Deus quiser.” 

Temeridade e virulência
Quanto ao texto de Natália Correia [que dá título também à biografia], uma transcrição:

“De 1934 a 1941, os nomes mais prestigiosos das letras e do jornalismo formaram uma barricada contra a repressão e o obscurantismo que, por obra e decreto da cátedra salazarista, minavam a sociedade portuguesa. Esse lugar de combate chamava-se O Diabo. Ei-lo agora ressurgido à luz da liberdade, com saias na direção. E que saias! Vera Lagoa que encabeça o novo avatar de O Diabo é, sem dúvida, uma personalidade controversa. São-no os homens que se arremessam para a linha de fogo. Quanto mais uma mulher! Perturba. Confunde. O culto do gineceu é sub-repticiamente pertinaz. A emancipação feminina, vá que não vá. Mas sempre custa ver uma mulher pôr na mesa as cartas que os homens escondem. Este vírus do despeito que se encarniça contra a coragem feita mulher tem dado maléfica saliência a um perfil de Vera Lagoa. Refiro-me à cronista que nos últimos tempos do regime deposto adquiriu foros de mundanidade. Imputam-lhe ter-se envolvido nos ócios de uma sociedade decadente. Vera Lagoa foi, de facto, a cronista dessas frioleiras. Mas… atenção. Ao refleti-las no espelho dos seus relatos irónicos, a cronista desnudava-lhes os ridículos. A crónica que fez desse extrato arrebicado de uma sociedade que se encaixava na moldura do regime fascista, permanece como um apreciável documento da deliquiscência [sic] mundana em que o fascismo desmaiava.”

5 curiosidades

1
Pseudónimo

Maria Armanda, nascida em Moçambique, não estudou além da 4ª classe, por causa das prisões e deportações do seu pai, Armando Falcão, opositor de Salazar

2
Agnóstica

Foi locutora da RTP, mas recusava-se a seguir os códigos da época. Recusava-se, por exemplo, a dizer, no final da emissão, “Até amanhã, se Deus quiser”. Foi dispensada por excesso de personalidade

3
Pseudónimo

Adotaria o nome com que se tornou conhecida quando foi jornalista do Diário Popular. A sugestão foi do seu amigo Sttau Monteiro: Vera, por ser verdadeira, Lagoa, porque era o nome do vinho na mesa

4
Bomba

Foi alvo de um ataque bombista na redação do Sol

5
Camarate

Lutou por uma investigação profunda ao que acreditava ter sido o atentado que vitimou Sá Carneiro, Adelino Amaro da Costa e Snu Abecassis

E prossegue acusando:

“Se chamo a atenção para este período da atividade cronística de Vera Lagoa em que os seus detratores querem ver o seu ponto vulnerável, é porque os juízos ligeiros tendem a constatar uma contradição entre a cronista do mundanismo agónico do fascismo e a corajosa e desmistificadora de mediocridades e desonestidades que têm parasitado a revolução. Não há realmente contradição. A Vera Lagoa de hoje é a Vera Lagoa de ontem. A que deu todo o seu entusiasmo e abnegação à campanha de Humberto Delgado. A que elevou a voz em muitos atos públicos e privados de protesto contra a máquina fascista. A que, na crónica, aparentemente fútil, fez a resenha dos ademanes quebradiços de uma sociedade em vertiginosa caducidade. A que, operada a mudança que viria a higienizar essa sociedade, implacavelmente aponta os focos de infeção que logo se instalaram na mudança para a corromper. É esta Vera Lagoa que, com toda a bateria da sua temeridade e virulência, está à frente de O Diabo para desconforto e susto de muitas consciências intranquilas. Temos, por conseguinte, um Diabo de Saias, que promete pregar não poucas partidas onde a solenidade é a capa debaixo da qual muita miséria política e moral se escapa. Aposto que vai ser divertido.”

Divertido, não sabemos, mas foi, pelo menos, turbulento e muito atribulado.

Para matar
O primeiro número saiu sem criar muitas ondas. Vera Lagoa considera-o “assim-assim”. Mas quando prepara o segundo número, Fernando Peres, o dono da gráfica que então fazia o jornal, chegou perto da sua mesa de trabalho e diz: “Faça uma coisa forte. O segundo número é decisivo.”

“Eu que me preparava para não fazer ondas, para não prejudicar o jornal, olhei-o e desatei a escrever. Sem parar. Ele a meu lado. Olhando. E eu escrevendo com fúria. Para matar ou morrer. Foi para matar.”

No dia 17 de fevereiro de 1976, no editorial d’O Diabo, Vera Lagoa ataca (mais uma vez) a mais alta figura da nação, Francisco da Costa Gomes. Não tendo tido espaço n’O Tempo para o fazer, finalmente pode dar azo à sua verve. O texto, intitulado O senhor Gomes de Chaves, começa assim: “Pois é… Costa Gomes é de Chaves e Chaves não está contente. Chaves reclama. Chaves lamenta-se, Chaves protesta. Mas Chaves não é só de Costa Gomes, e Chaves pode estar tranquila que não nos queixamos dela. Queixamo-nos sim, dele. Do senhor Gomes de Chaves.” E depois explica: “Porquê, outra vez, Costa Gomes? Porque Costa Gomes, além de incomodar Chaves, incomoda o país e incomoda-me, sobretudo, a mim. Precisamente, a mim. Se silenciei Costa Gomes durante muito tempo, não foi por ter ficado assustada com o processo que mandou levantar-me. Não me assusto com facilidade. Silenciei Costa Gomes porque, de repente, fiquei sem jornal onde escrever. Agora que o tenho, por que motivo eu não iria “repescar” Costa Gomes e dizer-lhe algumas coisas que, por falta de papel, deixei de lhe dizer?” Questionando o passado de Costa Gomes antes da Revolução dos Cravos, exorta-o a não se candidatar à presidência. Depois prossegue: “Não se admire de não lhe chamar Presidente da República. Não o chamo porque não o considero como tal. O senhor não foi eleito pelo povo (…) o senhor está nesse cargo devido a um golpe de Estado.” Depois, acusa-o de ter mandado prender os amigos, de os “achincalhar”, de ter até “consentido o gonçalvismo”. Termina o editorial – provocadora, evidentemente – referindo o que, para ela, era o pior defeito de todos de Costa Gomes: “O senhor é muito feio.”

Quanta audácia e quanta coragem eram necessárias para fazer, nessa altura, um editorial destes afrontando um militar e, mais grave ainda, o mais alto representante do Estado? O resultado é que o Conselho da Revolução, reunido extraordinariamente, invoca a publicação de “ofensas a algumas figuras militares e às Forças Armadas” para decretar a imediata suspensão do jornal. 

O Diabo fechava as portas pouco depois de as abrir.

Vera Lagoa é, sem dúvida, uma personalidade controversa. São-no os homens que se arremessam para a linha de fogo. Quanto mais uma mulher! Perturba. Confunde

Natália Correia
sobre Vera Lagoa, no primeiro número de O Diabo, em 1976

Uma vida cheia Um Diabo de Saias, de Maria João da Câmara, é editado pela Oficina do Livro

Mas este ato enquadra-se no difícil relacionamento do Conselho da Revolução com a imprensa. Entre 1976 e 1982, Portugal entra numa fase de transição constitucional que mantém o Conselho da Revolução, um órgão não eleito composto exclusivamente por militares cujo papel central na vida política portuguesa atrai as atenções da imprensa. Este relacionamento Imprensa–Conselho da Revolução é “marcado por ameaças à liberdade de imprensa, por instauração de processos a jornais e revistas (que não se coibiam de questionar, criticar e atacar os membros deste Conselho), por fugas de informação constantes e, finalmente, por cumplicidades e alianças.” Os relatórios semanais sobre “a situação político-militar do ponto de vista da leitura da imprensa”, elaborados pelos serviços de apoio ao Conselho da Revolução, eram a base sobre a qual os conselheiros se pronunciavam nas reuniões deste órgão. Sobre o que consideravam serem ataques aos militares, os seus membros advogaram amiúde a necessidade de procedimentos criminais contra jornalistas e órgãos de comunicação social. Isto é, O Diabo não foi caso único: vários jornais neste período são penalizados por não terem o “filtro adequado”, um filtro que calasse vozes discordantes do Governo, do MFA, do Partido Comunista, do próprio Conselho da Revolução… Há vários exemplos de jornalistas (M. Soares, d’O Templário) ou diretores (Valdez dos Santos, do Jornal Português de Economia e Finanças) a quem foi mesmo dada ordem de prisão: o Presidente da República considerava “um problema gravíssimo os insultos, as injúrias e afrontas feitas quase permanentemente às Forças Armadas e à própria Nação, na Rádio, na Televisão e na Imprensa”.

A partir daqui, o organismo que Vera Lagoa chama de “empolada excrescência de um frustrado totalitarismo militar que floresceu na era gonçalvista, de mãos dadas com o PC”, o Conselho da Revolução, fica na sua mira, bem como o seu “comandante”, o “major” Antunes, que “segredam-me que é ele que enleia, intriga, patua, combina, remexe”. Vera pede que este seja demitido das suas funções e, tal como com Costa Gomes, não o poupa: “Além do mais o homem é horroroso. Em todos os aspetos. Mesmo fisicamente. Comparado com ele, até o Costa Gomes parece a Sofia Loren!” Os militares foram o alvo preferido de Vera Lagoa, e por isso José Miguel Júdice diz: “Contra os militares, sobretudo, ela tinha uma graça… Ela era uma grande jornalista. Por exemplo, o “Gomes de Fezes”… Porquê? Porque há uma terra ao lado de Chaves, do outro lado da fronteira, chamada Feces… Portanto, ela chamava sempre ao Costa Gomes o Gomes de Fezes… Lagoa atrevia-se a brincar, mas, naquela altura, tocar nos militares era… Ela teve processos, fecharam-lhe um jornal e rebentaram-lhe com o outro, portanto não brincavam! Ora para uma mulher como a Vera Lagoa isso não lhe metia medo! Só lhe dava mais coragem, mais ousadia, mais liberdade!”

Segundo consta, também Vera Lagoa terá estado a poucos passos de receber uma ordem de prisão do Conselho da Revolução – o que terá sido impedido por intervenção de Almeida Santos: “Aconselhando que o mandato de captura fosse retirado, dizendo que eu devia, antes, ser julgada, inocentemente pensei que ele estava a proteger um jornalista e sua liberdade. Verifiquei depois que não era bem assim. Jurista que é, Almeida Santos não podia aceitar a ilegalidade. Presos – ou calados – sim, mas legalmente.”

Sol explosivo
Fechado O Diabo, Lagoa recebe e aceita a oferta do título O Sol, um jornal que havia sido fundado por Lello Portela, um amigo de seu pai. No seu primeiro editorial em O Sol, Vera escreve: “Vários títulos foram sugeridos quando da suspensão de O Diabo. Mas quando um amigo (dos tais dignos) num rasgo de solidariedade e camaradagem, me (nos) oferece O Sol, foi de braços abertos que o aceitei. Era o jornal do Lello. Era o jornal do homem que, além de grande jornalista, foi um lutador antifascista [sic], compelido à reserva com o posto de tenente-coronel, depois de ter brilhantemente atingido esse posto.” Depois, Lagoa refere que ele acreditava no seu talento como jornalista e também: “Numa coragem que ele dizia existir e, essa sim, encontro eu todos os dias. Todos os dias ela me é necessária. Foi-me necessária no caso de O Diabo. É-me necessária para reacender O Sol. É-me necessária para enfrentar os milhares de cobardes do meu país. Para enfrentar os oportunistas. Para enfrentar os videirinhos. Para enfrentar os neodemocratas [sic]. Para enfrentar aqueles que, amanhã, serão os primeiros a dizer que me entenderam sempre e estiveram sempre do meu lado. Mas eu não estou do lado deles. Estou no lado oposto. Sou, afinal, uma mulher da oposição. Da oposição à força bruta, de oposição àqueles que fabricam leis para melhor as violarem.”

Relativamente a O Diabo, apenas o título do jornal muda: o lettering d’O Sol é igual ao d’O Diabo, as cores são iguais, os colaboradores os mesmos, tudo se mantém. O jornal é aberto numa porta ao lado, a desafiar o poder. A desafiar, afinal, aquilo a que podemos chamar a censura democrática. Porque ela também existiu.

“O Sol quando nasce é para todos. Assim desejamos que aconteça com ‘O Sol’”, este é o título do estatuto editorial em que se afirma que “é um semanário que pretende servir os interesses do povo português por meio de uma informação livre, independente e não partidária.”

No dia em que o primeiro número sai nas bancas – 9 de março de 1976 –, rebenta uma bomba nas instalações do jornal. Vera Lagoa descreve o momento do rebentamento no editorial da segunda edição: “Uma hora da tarde. Sentada na minha mesa de trabalho, escrevo meu próximo artigo: ‘Moçambique, meu amor.’ Estremece o gabinete, bocados de madeira atingem-me, o barulho é tremendo. Uma explosão? Penso imediatamente que sim. Mas explosão duma bomba? Não. Não me passou pela ideia. Então onde está a brandura dos nossos costumes?” 

Mulher de causas Tomou como suas muitas dores alheias. Defendeu os retornados e as vítimas da descolonização apressada e os injustiçados do PREC

O engenho tinha sido colocado debaixo da secretária do paquete do jornal, um rapaz de 14 anos. Vera conclui que “não foi para assustar”. “Não se trata de petardos postos de madrugada, que destroem automóveis. Trata-se de petardos postos numa redacção, à hora em que toda a gente trabalha. À hora em que na sala em que rebenta a bomba, costuma estar sentado um miúdo de 14 anos, paquete deste jornal. Não estava, por acaso. Tinha ido almoçar mais cedo.” A bomba “de razoável potência projetou para o interior da redação de O Sol a porta da entrada e quebrou todos os vidros dos diversos patamares do prédio do rés do chão ao 7º andar”.

A diretora considera este “um precedente gravíssimo”. No entanto, para Miguel Alvarenga, “foi assim uma bombazina [sic], uma coisa pequena. Só a porta é que caiu”. Partilha o que então se dizia nos mentideros: “Na altura até constava que era o Esteves Pinto, um dos donos do jornal, que tinha feito isso (ele na altura andava cá escondido, era do ELP, e andava assim com um grande sobretudo, com um chapéu, que ainda dava mais nas vistas…!). E aquilo, não sei se foi um golpe publicitário, não era uma bomba brutal porque não destruiu quase nada. A porta da entrada e uma secretária que estava ali mesmo à frente é que ficaram um bocado escaqueiradas, mais nada.”

Incómoda
Embora não estivesse nem assustada, nem desanimada, Vera exterioriza a sua perturbação: “Estou inquieta e muito apreensiva sobre a atual situação deste país. De um país onde se permite (e talvez se concorde com) a colocação de bombas nas redações dos jornais. Nem nos períodos mais negros da “longa noite fascista” isso aconteceu. E daqui chamo a atenção para os meus colegas dos outros órgãos de informação para o terrível precedente criado. Hoje somos nós, O Sol. Amanhã serão outros. Todos os que incomodam. Que incomodam quem? Aí é que bate o ponto. Que incomodam quem?”

Provavelmente fruto das fugas de informação que pautaram estes tempos, e patenteando a profunda divisão do Conselho de uma Revolução no seu estertor, Vera Lagoa terá tomado conhecimento de um comentário feito nessa altura por um membro não identificado do Conselho da Revolução e não hesita em revelá-lo publicamente: “É evidente que sabia, desde a célebre (e honrosa) reunião do Conselho da Revolução, que alguns ou, mais precisamente, um conselheiro tinha declarado: ‘Vamos lá mandar rebentar com aquilo tudo.’”

Apesar de não se dar por vencida, no dia 30 de março Vera Lagoa abandona a direção do jornal por uma questão de saúde. O coração atraiçoa-a. Tem de ser internada com urgência no Hospital de Santa Maria. Como a própria Vera Lagoa explicaria, no hospital fica relativamente isolada do mundo, proibida pelo médico de ler jornais e de escrever.

Sobre este jornal, Lagoa diria: “Esse “Sol”, esse sim, foi de pouca dura. (…) Ainda saíram mais sete números, que com a minha ausência (tenho disso a certeza) iam valendo cada vez menos. E quando tive alta, olhei para o jornal que tinha feito com todo o amor e entusiasmo e desisti.” Fecha por sua vontade um jornal em que tinha posto a alma e “um pouco do meu corpo, pois o meu coração fora duramente atingido”.

Lagoa dá por encerrada esta página. Partiria para escrever outras.

Terminada a suspensão, O Diabo voltou a ser publicado a partir de 16 de fevereiro de 1977.

Nota: Excerto cortado e editado pela VISÃO.

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