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No dia em que faz 70 anos, segredos e (in)confidências de Tozé Brito na 1.ª pessoa

No seguimento desta entrevista de vida que deu à VISÃO, publicamos agora a segunda parte, em que Tozé Brito fala, sem pruridos, de mais episódios íntimos, bons, maus e caricatos, por que passou, relembrados a propósito do seu 70.º aniversário, que hoje se comemora. Aqui se revela o lado mais privado de uma das grandes figuras da música portuguesa (cantor, compositor, produtor, descobridor de talentos, criador de estrelas, para lá de ter sido diretor de duas das maiores companhias discográficas). Encontrámos um Tozé Brito de bem com a vida, embora preocupado com os rumos que o mundo vai tomando (e, num plano “irracional”, com o seu Benfica), e entusiasmadíssimo com o álbum de tributo à sua obra que está a ser finalizado para sair em outubro. Tarefa hercúlea para quem a abraçou: o compositor tem registadas na Sociedade Portuguesa de Autores – de que é, desde 2018, vice-presidente – mais de 500 canções, 200 das quais escritas a solo, e as restantes em colaboração. A palavra ao avô babado de seis netos, com idades entre 17 e 3 anos.

Há quem diga que a sua relação com Inês Meneses o rejuvenesceu.

Subscrevo a apreciação.

Mas transitou diretamente de um casamento de décadas, do qual nasceram as suas duas filhas, Ana e Niki. Há de ter sido muito difícil terminar com um casamento tão prolongado…

Não tenho orgulho nenhum em dizer que nunca fui um marido exemplar. Houve coisas que não funcionaram, não estava feliz na situação em que vivia. Havia um desencanto, falta de paixão. Mas enquanto as minhas filhas foram novas, não estavam casadas, achei sempre que mudar de vida por mudar de vida também não fazia sentido. 

Estava a viver uma vida dupla, o que não era simpático para ninguém

Porquê?

Sentia-me um elo de uma cadeia e havia ali responsabilidades que não queria rejeitar de forma nenhuma e, já com as minhas filhas casadas, fui ficando na situação em que estava. Mas cada vez mais acomodado e a sentir-me desapaixonado, quando sou muito de paixões, em todos os aspetos. Fui-me acomodando a uma situação que não era ideal de forma nenhuma. Até porque estava a viver uma vida dupla, o que não era simpático para ninguém. E, a partir de determinada altura, decidi que era melhor ser honesto. Penso, hoje, que é preferível magoarmos as pessoas uma vez e não continuar eternamente a cometer os mesmos erros, e a viver com sentimentos de culpa. É melhor sermos honestos e verdadeiros e viver outra vida onde, aí sim, encontramos afinidades com outra pessoa. Foi o que encontrei na Inês.

Mudando radicalmente de assunto: fez o Serviço Militar Obrigatório no esquerdista COPCON, sob o comando de Otelo Saraiva de Carvalho, em pleno Processo Revolucionário em Curso (PREC), em 1975…

É verdade. Fui incorporado, em 1975, numa unidade do COPCON. Foi onde passei o PREC, a fazer o serviço militar, como furriel, o que na altura, naquela unidade, era complicado. 

Tem recordações amargas?

Absolutamente nenhumas. O que eu e outros fazíamos era trabalho de campo. Houve ocasiões em que saíamos às três da manhã do quartel, a Berliet deixava-nos no meio de uma serra com um cobertor nas costas e com uma G3, e íamos à procura de sítios – nem lhes vou chamar aldeias – sem eletricidade nem água potável. E a nossa missão era, no mínimo, fazer puxadas de eletricidade para dentro das casas. Na primeira vez em que nós conseguimos montar uma televisão dentro de uma destas casas, ninguém imagina a alegria e as lágrimas a caírem por aquelas caras abaixo. Eram pessoas por completo entregues a si próprias. Portanto, alguma coisa foi bem feita em 1975.

Otelo sabia, em 1975, que o Tozé Brito era seu subordinado?

As muitas vezes em que estive com ele já aconteceram depois de eu ter saído do serviço militar. Foi aí que o Otelo soube que eu tinha sido soldado sob comando dele. E que também tinha sido saneado da tropa, após o 25 de novembro de 1975, por estar no COPCON.

Como se situa, hoje, politicamente?

Nunca tive tendências esquerdistas. Para mim, a extrema-esquerda é igual à extrema-direita. Situo-me no centro-esquerda, porque as minhas preocupações sociais me levam a ser menos liberal do que outras pessoas, contra as quais nada tenho. Basta que sejam defensoras da democracia. 

O que é ser “menos liberal”?

É denunciar a falta de uma justiça social, que não existe a nível planetário. Sempre me fez imensa confusão o facto de não sermos mais solidários, de não se encontrar mecanismos de redistribuição da riqueza, que permitam aos países do Terceiro Mundo viverem um pouco melhor, para que ninguém morra à fome, ou de doenças das quais já ninguém morre no Primeiro Mundo. Sinto-me próximo da verdadeira social-democracia, e não é por acaso que começa pela palavra “social”. É uma preocupação que não pode nunca deixar de prevalecer. E que, insisto, tem também a ver com a solidariedade que é necessária e que hoje em dia muita falta faz: perante a desgraça de termos o Primeiro Mundo todo vacinado e o Terceiro Mundo apenas com 2% de pessoas vacinadas, não se acaba com pandemia nenhuma. 

Quando o País ainda estava dominado pela chamada música de intervenção, aparecem os Green Windows e, depois, os Gemini, grupos a que pertenceu, a cantarem leves e “orelhudas” canções pop de amor. Algum daqueles cantores de intervenção confrontou-o com uma crítica mais acirrada?

Não. Mas sentíamos que a malta da intervenção menosprezava um pouco o que nós fazíamos. Pela maneira como nos olhavam, pela forma como falavam de nós quando davam entrevistas, até pelo que a Imprensa da altura dizia de nós. E, no entanto, muitos deles seriam meus artistas, porque a partir de 1978 fiquei responsável pelas contratações da Polygram.

Compor é a coisa que sempre mais gostei de fazer na vida. É-me fácil, nunca bloqueio

De uma curiosidade para outra: qual é o seu método de composição? Escreve primeiro a música e depois a letra, ou é o inverso?

Compor é a coisa que sempre mais gostei de fazer na vida. É-me fácil, nunca bloqueio. O meu método é este: leio, vejo ou estou a conversar com alguém que me diz alguma coisa que me chama a atenção e penso logo que aquilo pode dar uma canção ou o mote para uma canção. E tomo nota. Agora, no telemóvel, antigamente em blocos. Tenho-os às dezenas, com ideias que tantas vezes também me fazem levantar a meio da noite para as apontar. De repente, há uma coisa que me bate e penso: “Pode dar uma excelente canção.” Depois tenho de desenvolver a ideia à minha maneira.

E saem à primeira?

Não! Começo pela letra. Depois são as palavras que me induzem e trazem a música até mim. Mas tenho um defeito, que é o da correção permanente e se, às vezes, não me travo, estou perdido, porque nunca mais acabo. Tenho de chegar a uma altura em que decido que não mexo mais na letra. E não me perguntem como as coisas acontecem, que não sei explicar. Mas acontecem assim há 54 anos…

Com Lena Coelho, uma das futuras quatro integrantes das Doce, em 1979, quando o projeto daquela “girlsband”, de que Tozé Brito foi o mentor, começava a ganhar forma

Nunca lhe sucedeu ter de fazer ao contrário – encaixar uma letra numa música já feita?

Quando escrevia para os Gemini, o Mike Sergeant, que compunha comigo para o grupo e depois também para as Doce – o Amanhã de Manhã, por exemplo, foi feito com ele -, tinha de fazer a música primeiro. Ele não conseguia musicar letras que estivessem feitas. Criava uma canção, com a melodia e a harmonia, mas sem palavras – só emitia uns sons vocais ou dizia umas frases soltas em inglês. E eu depois tinha de fazer a coisa mais complicada que fiz na vida: encaixar uma letra numa música já feita, com tónicas nos sítios certos, decassílabos, quadras com sete sílabas… Mas canções que sobreviveram ao tempo, como o Pensando em Ti, dos Gemini, foram escritas assim.

Supõe-se que, por si só, nunca tentou inverter o seu método de composição…

Tive de o fazer uma vez, por encomenda. Foi no Papel Principal, que escrevi para a Adelaide Ferreira. Por isso é que a letra é tão básica e simples. Mas é uma história curiosa. Ela tinha um namorado, com quem estava na altura e com quem se zangou. Queria uma balada a dizer o que a letra da canção diz: “Quem perdeu/ Foste tu só tu e nunca eu/ Afinal, hoje o papel principal é meu e só meu.” São, claro, palavras minhas, depois de ela me explicar o que pretendia: “Quero uma canção para lhe dizer adeus, para me despedir dele, mas tem de ser uma coisa muito forte.” Pedi-lhe uma ideia do que ela achava que fosse forte. E ela: “Olha, o Still Loving You, dos Scorpions.” E eu pensei: “Estou lixado.” 

Foi ouvir o tema dos Scorpions?

Ouvi-o umas 30 vezes, até ficar imbuído daquele espírito. De repente peguei na guitarra, depois de perceber o ambiente, e, à medida que escrevia a música, as palavras iam-me surgindo. Mas a música nasceu primeiro. Uma encomenda baseada no Still Loving You dos Scorpions… Isto são coisas do arco da velha. 

E também pôs Vítor Espadinha a cantar…

O que se passou com ele também tem graça. Veio ter comigo em 1978 e disse-me que tinha sido saneado do teatro Maria Vitória por questões sindicais. “Tens de me salvar, tens de me pôr a cantar”, dizia-me ele. E pedi-lhe que cantasse. Ele não cantava nada. Zero. Desafinava por todos os lados. “Ó Vítor, tu não cantas, pá.” Não podia dizer-lhe outra coisa. “Mas eu aprendo”, insistia ele. E eu pensava para os meus botões: “O que é que vou fazer a este homem, que está tão à rasca?” Perguntei-lhe: “Do que é que gostas de música?” Só me falava do Jacques Brel. “Eh pá, esquece isso”, respondi-lhe. Lá fomos andando e ele falou no Joe Dassin. Era uma boa ideia. O Joe Dassin tem aquelas canções em que fala, fala e depois no refrão canta com um coro feminino. Disse-lhe para escolher uma canção do Dassin, e ele apareceu com o L’été Indien. A canção começa com três notas, uma descida, e eu fiz uma subida, com as mesmas três notas. Depois a minha canção, Recordar é Viver [de 1978], foi por ali fora e não tem absolutamente nada a ver com a outra. Mas não tenho problema nenhum em dizer que copiei a fórmula da canção do Joe Dassin.

Como correram as coisas em estúdio?

Pu-lo a falar com aquela voz bonita que ele tem, é um diseur natural. Na gravação, a parte falada ele fê-la como quem bebe um copo de água. Mas depois levámos três noites a gravar o refrão cantado, frase a frase, palavra a palavra. Quando afinava, eu dizia: “Alto. Está gravado. Agora vamos à frase seguinte.” Com o refrão afinado e gravado frase a frase, passámos ao coro feminino. E assim nasceu uma canção que, entre singles, cassetes e álbuns, vendeu mais de meio milhão de cópias. O que é incrível é que, a partir daí, o Vítor começa a ter aulas de canto, e ao fim de um ano estava em palco a cantar na perfeição a canção, essa e outras, sem desafinar. O ouvido estava lá, mas faltava-lhe ser desenvolvido. Era ator e na revista “parolava” canções, como a gente diz. Se pensarmos bem nisto, concluímos que há de haver muita gente com aptidões para poder cantar e que nunca as desenvolveu. E que, se tivesse aulas durante seis meses ou um ano, iria descobrir que pode cantar – e até muito bem.

O álbum de tributo à sua obra ainda está a ser finalizado, para sair em outubro. Mas, por certo, já ouviu alguma coisa do que lá está…

A ideia partiu da Inês Meneses, e foi apadrinhada pela Paula Homem, diretora-geral da Sony Music. Segundo elas, e uma vez que faço 70 anos, era giro pegar em músicos das novas gerações e deixá-los escolherem a canção que quisessem. Cerca de 70 canções de uma pré-seleção foram dadas a ouvir às 14 pessoas que intervêm neste projeto, porque algumas cantam em dueto. Escolheram as canções que queriam, e os produtores são o Benjamim e o João Correia.

A coisa que mais prazer me dá é ouvir uma nova geração a pegar nas minhas canções, desconstruí-las todas, virá-las do avesso, fazerem arranjos novos, cantarem de outra maneira

E o que já ouviu?

De repente sou surpreendido com um disco que vai do Camané ao António Zambujo, do Tiago Bettencourt ao Tomás Wallenstein, do Miguel Guedes ao B Fachada, do Samuel Úria à Joana Espadinha ou à Selma Uamusse. Do que ouvi, as canções estão completamente diferentes do que eram quando foram gravadas. Fiquei completamente fascinado, porque não têm nada a ver com aquilo que gravei há 30, 40, 50 anos. Às vezes, a melodia é um bocadinho mudada, o que até é bonito. A coisa que mais prazer me dá é ouvir uma nova geração a pegar nas minhas canções, desconstruí-las todas, virá-las do avesso, fazerem arranjos novos, cantarem de outra maneira.

Seguir-se-á o projeto Tozé Cid, a ser lançado em 2022. A palavra “reforma”, já se viu, não faz parte do seu léxico…

Enquanto a pessoa tem saúde, a reforma, para mim, não faz sentido. Talvez tenha um trauma. Vi o meu pai, que trabalhava em seguros, reformar-se cedo. Ofereceram-lhe uma excelente oportunidade, ele aproveitou e veio para casa. Os primeiros anos foram uma maravilha: passeava, estava com os amigos, nadava na piscina do condomínio onde vivia. Mas, a partir de determinada altura, comecei a vê-lo a cair, a ficar cada vez menos interessado no que se passava à volta dele, quando sempre o tinha visto como uma pessoa superativa. Às tantas, passava muito tempo no sofá, a ver televisão, a ler – quase não saía de casa. Depois adoeceu, com um cancro, e em dois anos morreu. Acho que toda aquela inatividade foi uma das razões por que a doença aconteceu. E fiquei sempre com aquela ideia de que essa coisa de vir para casa e não fazer nada não é bom.

Já agora: em estúdio, enquanto produtor, como trabalha?

Dispo as canções de instrumentos. O mais possível. Tenho o prazer de apagar instrumentos. Para mim, quantos mais instrumentos houver, pior é. Sou muito a favor de coisas depuradas, limpas. Muito acústicas, até, se possível. 

Qual é o seu hobby preferido?

Se me perguntasse o que mais gosto de fazer a seguir a tocar guitarra, respondia: jogar golfe. 

É uma descoberta recente?

Não. Jogo desde os 30 anos.

E qual é a viagem que lhe falta fazer?

Adorava conhecer a Polinésia, e também a Nova Zelândia e a Austrália. Mas isto é um sonho. Já fiz as minhas contas e, para conhecer isto tudo, preciso de um mês. Vamos ver se ainda consigo concretizar a minha viagem que está por fazer.

O transtorno que um jogo do Benfica me causa é uma coisa que não consigo explicar

Sabe-se que é um benfiquista ferrenho…

Quando joga o Benfica, sou um sofredor. Não me contenho – digo palavrões horrorosos. Transformo-me num ser estranho, quase irracional. O transtorno que um jogo do Benfica me causa é uma coisa que não consigo explicar. Mas tenho uma vantagem em relação a outros sofredores: eu desligo por completo uma hora depois de ter visto o jogo. 

Como viu a detenção do ex-presidente Luís Filipe Vieira, sob graves indícios criminais?

Aconteça o que acontecer, o Benfica, que é um dos grandes clubes do mundo, sobrevive a qualquer crise. Quanto ao resto – e esta é para mim a maneira mais correta de estar na vida -, tenho convicções, mas não tenho certezas. Nunca sei o suficiente para dizer que sei.

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