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António Mega Ferreira: “As redes sociais transformaram-se na cloaca da nossa civilização”

O texto final foi entregue à editora no início de abril e já no próximo dia 20 de maio, num tempo recorde, chega às livrarias Desamigados, o novo livro do escritor, jornalista e ex-gestor António Mega Ferreira, 72 anos, que assim se estreia no catálogo da Tinta-da-China. O resto do título explica melhor o que se segue: …Ou Como Cancelar Amizades sem Carregar no Botão. Como explicará nesta conversa na sua casa lisboeta, a dois passos da Avenida da Liberdade, rapidamente lhe ocorreram estes onze casos de amizades célebres que acabaram mais ou menos abruptamente. A mais antiga, cronologicamente, é a de Júlio César e Marco Júnio Bruto. As suas histórias são-nos contadas em capítulos breves, num estilo tão descontraído como erudito que apela facilmente à curiosidade voyeurista do leitor e que faz deste volume uma excelente companhia para uns dias de férias. Ainda este ano, Mega Ferreira deverá publicar (na editora Sextante) Crónicas Italianas, que fecha uma trilogia dedicada a Itália. Lentamente, para um futuro ainda incerto, vai preparando um outro livro, a que chama “uma maneira oblíqua de escrever algumas das minhas memórias”: Dicionário Afetivo das Palavras Perdidas. Sempre as palavras… Aí começa, e termina, esta conversa.

Palavras muito antigas ganham novos sentidos e subtilezas com as mudanças tecnológicas e sociais. É o caso da palavra “amigo” nesta era das redes e das relações virtuais, não é? Que amizades são essas?
Creio que, verdadeiramente, não há afetos envolvidos nessas relações virtuais. Há curiosidade, apenas. Alguém que eu não sei quem é diz-me “peço-lhe amizade” e eu respondo “sim”. Isso não pode ter grande significado, não é? A primeira vez que me apercebi disso foi quando li, já não sei onde, que o Enrique Iglesias, aquele cantor filho do Julio Iglesias, tinha 500 mil “amigos”. E eu pensei: “Não pode ser, ninguém tem 500 mil amigos! Não há tempo de vida suficiente…” Lá está, não há uma verdadeira aproximação, com afetos, é só uma forma de as pessoas estabelecerem um contacto a partir de uma curiosidade que pode ser recíproca. Foi, de facto, a tecnologia que permitiu esse alargamento do sentido da palavra.

Não é nada dado às redes sociais, pois não?
Não, nada. Mas sei o que se passa, claro. Toda a gente à minha volta está nas redes sociais! Mandam-me coisas do Facebook, que na maior parte das vezes nem consigo abrir porque não estou lá…

Na sua “bolha” Nas paredes da sala de António Mega Ferreira, bem no centro de Lisboa, a arte contemporânea portuguesa rivaliza com as estantes cheias de livros

Nunca teve essa tentação? É mesmo uma recusa assumida e militante?
É uma rejeição, sim. Por várias razões. Logo no início, associei as redes sociais a uma intrusão, a recebermos mensagens que não queremos receber, o que já é muito facilitado simplesmente pela internet… E, depois, vi toda a gente, de repente, a precipitar-se para o Facebook com grande excitação, mesmo as pessoas mais improváveis. Aquilo começou a irritar-me e apetecia-me responder: “Está bem, o Facebook pode ser bom, mas os livros são melhores.” E a partir de certa altura, as redes sociais transformaram-se na cloaca da nossa civilização. É a “cloaca maxima”, tal como na Roma Antiga, o sítio onde vão parar todos os dejetos. Qualquer besta, qualquer imbecil, qualquer analfabeto exprime a sua opinião, com o mesmo valor de outra opinião qualquer, dirigida a uma massa indiferenciada de pessoas que partilham daqueles valores… É levar às últimas consequências o pecado original de qualquer regime democrático: um voto é igual a qualquer outro voto. Essa é, aliás, a razão de ser das democracias, mas isso não quer dizer que não verifiquemos que pode haver aí uma perversão… Sabendo nós que a ignorância é naturalmente atrevida, chega-se a um atrevimento generalizado e caucionado por essas redes sociais. São um instrumento que acaba por funcionar como caução a uma espécie de mediocracia, para não irmos mais longe…

E nunca teve a curiosidade de ver esse instrumento de perto?
Não. Mas não sou nenhum infoexcluído… Em 1989, o primeiro memorando para apresentar ao governo o que viria a ser a Expo’98 foi escrito num computador Mac. E devo ter sido das primeiras pessoas em Portugal a começar a comprar online com regularidade, sobretudo livros, logo desde 1994. As redes sociais é que não me dizem nada, e o que me dizem não é bom.

As redes sociais também inventaram o fenómeno das “bolhas”. Pode estar nas redes e relacionar-se exclusivamente com quem lhe interessa…
Sim, é verdade. Mas numa bolha já eu estou! [Risos.] Para quê formalizar isso?

Podia facilitar a comunicação com essas pessoas…
Não insista, está mesmo a ser advogado do diabo [risos]! Eu uso o email, o telemóvel, a primeira coisa que faço de manhã é ir ver o correio ao computador. Não escrevo cartas há anos…

Pronto, fim do julgamento sobre redes sociais. Como surgiu, então, a ideia para este Desamigados?
Estava nas minhas férias de verão, no Algarve, em 2018. No fim do jantar, um amigo que estava sentado à minha frente na mesa, olhou para o telemóvel e disse: “Ah, grande ordinário, vou já desamigá-lo!” E, pimba, carregou num botão. Eu fiquei a pensar naquilo: que curioso, tão fácil que é as pessoas desamigarem-se hoje em dia… Lembrei-me logo de alguns desamigamentos que não foram assim tão fáceis. Dois dias depois, já sabia que ia escrever um livro sobre o assunto. E os casos que estão no livro ocorreram-me todos muito rapidamente.

Qual foi o primeiro “desamigamento” de que se lembrou?
O primeiro que me ocorreu foi o Dante e o Guido Cavalcanti, porque estava a trabalhar, na altura, na tradução das rimas do Dante. Logo a seguir lembrei-me do Voltaire e do Frederico da Prússia… E apeteceu-me logo imenso começar a escrever. Curiosamente, é difícil explicar como as amizades nascem, como começam, porquê. Até cito aquela célebre frase do Montaigne: “Parce que c’était lui, parce que c’était moi [porque era ele, porquer era eu].” É uma atração, uma química… Já os desamigamentos são, normalmente, mais fáceis de perceber.

“A língua não é nenhuma vanguarda da revolução; é até uma retaguarda, onde as mudanças chegam só depois de os comportamentos se alterarem na sociedade”

Chama “amigo” a muitas pessoas, atualmente?
Não… Mas há, pelo menos, dois sentidos para as palavras “amizade” e “amigo”. Pessoas de quem se gosta e que gostam de nós, mas que não frequentamos assiduamente, é, talvez, o sentido mais corrente, como quando dizemos: “Estavam lá muitos amigos meus.” Depois, há um pequeno grupo, pelo menos no meu caso, que são os amigos mesmo. Dois deles perdi-os nos últimos anos: a Gabriela Cerqueira e o José Sarmento Matos. Com a sua morte, esse pequeno núcleo reduziu-se ainda mais. Na minha idade, já não substituo, os grandes amigos não são propriamente renováveis.

É uma palavra que lhe diz muito, “amizade”?
Sim, absolutamente. Sou muito sensível às manifestações de amizade. Desses poucos amigos, alguns deles estão nesse núcleo restrito porque uma vez tiveram, para mim, um gesto qualquer que eu valorizei muito e me fez pensar: “Aqui tenho um amigo verdadeiro.” E sou naturalmente sociável e gregário, gosto muito de estar com amigos, embora isso hoje aconteça menos.

Tem amigos que vêm do tempo da infância e da adolescência?
Atualmente, não… Tinha o Sarmento Matos, que conheci quando frequentávamos o primeiro ano do curso de Direito, e ficámos amigos para sempre. O Domingos Piedade, que também morreu há pouco tempo, é que era mesmo amigo de infância… Era meu vizinho de baixo, na Mouraria, onde eu cresci. No corredor da minha casa fazíamos grandes corridas de carros com os “dinky toys”, que tinham acabado de aparecer… Para mim, foi sempre o Nini. E ao longo da vida, apesar da distância, até porque durante muito tempo ele nem vivia em Portugal, cada vez que nos encontrávamos caíamos nos braços um do outro. Chegou a ser manager do Emerson Fittipaldi e de outros grandes pilotos de Fórmula 1, e tudo começou no corredor da minha casa!

A era dos confinamentos “Sou naturalmente sociável e gregário, gosto muito de estar com amigos, embora isso hoje aconteça menos”

Com alguma história da sua vida podia ser protagonista deste Desamigados?
A resposta é: se calhar, vírgula, podia, reticências. Escreva mesmo assim: se calhar, podia…

No capítulo sobre Sartre e Camus percebe-se que se aproximaram muito no contexto da ocupação de Paris e da resistência, na Segunda Guerra Mundial, mas depois afastaram-se tomando caminhos diferentes. Em Portugal, aconteceu muito isso no pós-25 de Abril, gente que estava mais próxima no combate ao Estado Novo e que depois…
Absolutamente, sem dúvida.

Não pensou em incluir no seu livro um caso português mais recente?
Pensei, claro. E havia mesmo um caso muito marcante, no espírito deste livro: Mário Soares e Salgado Zenha. Eu era jornalista na altura e assisti a essa história com alguma proximidade. Foi muitíssimo doloroso porque era mesmo uma grande amizade. Claro que também falo de muitos outros casos dolorosos, mas estou totalmente à vontade porque não estava lá, são distantes para mim… É verdade que já morreram os dois, mas mesmo assim preferi não escrever aqui essa história. Eles eram grandes companheiros, amigos mesmo a sério; jantavam em casa de um e iam tomar café à casa do outro, como acontecia com o García Márquez e o Vargas Llosa em Barcelona. E acho que o processo foi mais doloroso para o Mário Soares do que para o Salgado Zenha…

“É difícil explicar como as amizades nascem, como começam, porquê. Já os desamigamentos são, normalmente, mais fáceis de perceber”

Voltando às palavras que ganham novos sentidos com as mudanças sociais. Como vê esta tendência, associada à expressão “politicamente correto”, para encontrar novas maneiras de dizer e escrever certas palavras, nomeadamente procurando um género neutro, para acelerar transformações na sociedade?
Há muitas formas neutras que já existem. Por exemplo, a palavra “imbecil” dá para essa gente toda… Vamos lá ver: a língua tende a codificar coisas que existem na prática social, e não o contrário. Ou seja, a língua não é nenhuma vanguarda da revolução, é até uma retaguarda, onde as mudanças chegam, codificadas, só depois de os comportamentos se alterarem na sociedade, e isso não acontece em seis meses. Acreditar que as coisas se passam ao contrário é pôr o carro à frente dos bois… Acho isso um disparate. Há pouco tempo houve uma polémica em Espanha, em que a atual vice-presidente do Governo, Carmen Calvo, que representa o pior que o PSOE tem, veio apoiar a ideia de que se devia dizer “portavoza” e não “porta-voz” e pediu mesmo para que a Real Academia Espanhola se pronunciasse sobre isso. Nesse caso, “voz” até já é uma palavra feminina, é mesmo absurdo… Claro que há palavras que se impõem e passam a ser de uso corrente. Em Portugal, por exemplo, a palavra “ministra” generalizou-se a partir do momento em que Maria de Lourdes Pintasilgo foi primeira-ministra.

É a vida da língua…
Sim, é isso mesmo. E a língua, muitas vezes, não tem regras estritas. O próprio uso e a prática social quotidiana vão ditando as suas transformações. Eu estou a escrever outro livro, uma ideia antiquíssima que vai avançando devagar. Vai chamar-se Dicionário Afetivo das Palavras Perdidas. Aí escrevo sobre palavras que eram comuns na minha infância e primeira adolescência e que se perderam, que deixaram de ser usadas. Já ninguém diz “velhaco”, por exemplo. Ou “vitualhas”, uma palavra que se for dita hoje é com um sentido irónico, no gozo. Encontrei essa palavra numa banda desenhada do Capitão Fracasse que saiu quando eu tinha 6 anos… Claro que achei estranho e fui tentar perceber o que eram as vitualhas. É sobre essas histórias, de que me lembro, que vou escrever na entrada de cada palavra. No fundo, será uma maneira oblíqua de escrever algumas das minhas memórias. Já tenho ali uma lista com perto de cem palavras…

Tão amigos que nós éramos

Ao todo, António Mega Ferreira recorda em Desamigados (Tinta-da-China, 192 págs., €15,90), que chega às livrarias no próximo dia 20, onze amizades que não acabaram bem, todas entre homens. Alguns exemplos

Bocage e José Agostinho de Macedo Um caso clássico de rivalidade que acaba por pôr em causa a amizade, e admiração mútua, que pudesse existir. Na Lisboa da transição do século XVIII para o XIX, Manuel Maria Barbosa du Bocage e o padre José Agostinho de Macedo competiam, palavrosos e orgulhosos poetas, pelo lugar de “sultão do Parnaso”, num país cada vez mais dividido entre liberais e defensores do Antigo Regime. Macedo não aceitava a sua inferioridade perante o génio irreverente de Bocage. O tempo faria o seu claro julgamento… A este capítulo, Mega Ferreira chamou O Cisne e o Ganso.

Ernest Hemingway e F. Scott Fitzgerald A amizade fortaleceu-se pelo facto de serem, durante anos, dois escritores americanos em Paris. Mas talvez a relação estivesse condenada desde o início. “Ao temperamento impulsivo, ostensivamente viril, não poucas vezes rude e brutal de Hemingway, contrapunha-se a natureza mundana, sensível, insegura, autodepreciativa de Scott. Fitzgerald era a vítima ideal para a vontade de domínio de Hemingway”, escreve Mega Ferreira. As picardias sobre os livros de cada um sucederam-se e fragilizaram, sem remédio, a amizade entre os dois.

Jean-Paul Sartre e Albert Camus As suas personalidades eram bem diferentes. Mas quando se conheceram, em plena Segunda Guerra Mundial, numa Paris ocupada pelos Nazis, não só estavam do mesmo lado da barricada como reconheciam mutuamente os respetivos talentos literários. No pós-guerra, eram as duas grandes figuras intelectuais francesas. Foi precisamente no campo das discussões políticas e de pensamento, tão importantes na época, que a amizade soçobrou. A aproximação de Sartre ao Partido Comunista Francês (e a Moscovo) era pouco compatível com a ideia de liberdade defendida por Camus.

Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa Quando viveram em Barcelona, a partir de 1970, em pleno boom do sucesso internacional da literatura latino-americana, além de vizinhos, eram praticamente inseparáveis. Nada faria prever que essa amizade terminasse de forma espetacular em fevereiro de 1976, quando, em pleno Palacio de Bellas Artes, no México, antes da estreia de um filme, Vargas Llosa desferiu um poderoso soco no olho esquerdo de Gabo. A razão? Uma velha história de ciúmes (extraliterários…). Nunca mais trocaram uma palavra.

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