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Salman Rushdie: « Tive alguns problemas com profetas, e não me candidato ao lugar »

Este não é o Salman Rushdie do romance Fúria. Nem o arauto do pessimismo ouvido no palco do Folio, o festival literário de Óbidos. Acolchoado no quarto de hotel lisboeta, o escritor, 69 anos, nascido em Bombaim, ficaria bem na fotografia com uma chávena de Earl Grey. É o perfeito british gentleman: profissional, espirituoso, educadíssimo, impávido perante a fila de jornalistas que cresce no corredor. Se se olhar mais de perto – e tomando de empréstimo os jinn (os mesmos génios que imaginávamos saídos de aladinescas lâmpadas), personagens do seu último romance publicado, Dois Anos, Oito Meses e Vinte Oito Noites (D. Quixote, 2015), outra forma de dizer as mil e uma noites nesta tapeçaria literária – Rushdie poderia facilmente passar por um jinn benigno, barriga redonda, olhar irónico, banhado numa satisfação que parece, aos incautos, sobrenatural. Afinal, o homem sobre quem o ayatollah Khomeini proclamou, em 1989, uma fatwa (sentença de morte, ainda não desaparecida) por causa do romance Os Versículos Satânicos e que viveu escondido durante cerca de doze anos (episódio que contou em detalhe na biografia Joseph Anton, em 2012), venceu. Vive a sua vida. “Já foi há tanto tempo…”

Dominou a multidão no Folio. Isto é um poder?

Quando começamos a ser escritores, especialmente se estamos a tentar ser escritores a sério, nunca nos ocorre que poderão haver grandes multidões. Não escrevemos pela popularidade e pela fama; se as atingimos, é sempre uma surpresa. Fiquei surpreendido com a quantidade de pessoas que aqui apareceram. É claro que é encantador, porque eu gosto dos meus leitores: são um pouco de tudo, diferentes origens, idades, países, etnias… Se, em Inglaterra ou na América, perguntarmos a um editor quem é que vai às leituras de livros, eles respondem: “Mulheres brancas de meia-idade.” Sem elas, a indústria do livro morreria amanhã. Obrigado, mulheres brancas de meia-idade! [Risos]. Mas, ao ir viver em Nova Iorque, fiquei surpreendido por ter muitos leitores na comunidade afro-americana.

Porquê?

Eu não compreendia porquê. Mas perguntei a um amigo negro as razões porque ele achava que era assim. E ele disse-me: “É óbvio.” “O que é que queres dizer com isso? Não é nada óbvio.” E ele respondeu-me: “É porque tu és um badass motherfucker!” OK, não vou discutir. [Risos.]

Cada um desses leitores olha-o como um oráculo?

Resisto muito a essa ideia. Tive alguns problemas com profetas, e não me candidato ao lugar. Aquilo a que as pessoas respondem é ao contar histórias. Gostamos de uma história bem contada, não importa onde esta tem lugar ou de que povos fala. No início, percebi que a grande literatura do século XX se tinha distanciado da narrativa e isso foi um erro. Os maiores escritores dos séculos XIX ou XVIII, como Cervantes, Dickens, até Balzac, estavam interessados em narrar uma história. Se queremos construir um grande carro, temos que colocar-lhe um grande motor. A história é o motor do romance. Pedem-me muito para teorizar sobre os assuntos, mas essa não é a minha natureza. Não sou o que se senta a analisar como um filósofo. A minha maneira de compreender o mundo é encontrar uma história para contar sobre ele. E isso também é verdade para os leitores: eles querem ler sobre seres humanos em certas situações e entender o que é estar nesse
mundo.

Sofre da inveja dos que dizem: “Quem me dera ter escrito este livro”?

A inveja é sempre um bom sinal para um escritor. Não é um pecado capital, há outros pecados capitais que eu pratico…Mas ensina-nos outra maneira de ver. Quando estudava em Cambridge, lembro-me de ter encontrado os primeiros contos de Borges, Ficciones, traduzidos em inglês. “Quem é este velho cego?”
E ali, de pé na livraria, a abrir aquele pequeno livro, fui como a Alice a cair no buraco do coelho: vuuum… para dentro daquele mundo. “Onde estou? Seja onde for, é um belo lugar para se estar.”

Subscreve a definição de Borges: “Sempre imaginei que o paraíso fosse uma espécie de biblioteca”?

Não sei… Borges gostava apenas de bibliotecas. Eu gosto de outros lugares também [risos]. Estive em Buenos Aires apenas uma vez, mas tive a sorte de tornar-me amigo da viúva de Borges, Maria Kodama, e ela mostrou-me a recriação do apartamento dele na sua fundação. Não conheci Borges, mas conheci a sua
biblioteca. E é uma biblioteca espantosa, mas recordo-me que o que me impressionou foi a divisão que continha apenas enciclopédias, de tudo: futebol, selos… O quarto onde ele escrevia era uma cela de monge: tinha um crucifixo na parede, um catre estreito onde ele se deitava, uma mesa, uma cadeira de madeira.

Como é o lugar onde escreve?

Jose Carlos Carvalho

Quando me mudei para Nova Iorque comprei uma casa em mau estado. Mas arranjei-a segundo os meus desejos. Construí o espaço de escrita mais simpático que já tive. É ótimo: estou sentado na minha secretária e tenho vista para o edifício Chrysler. Não é a cela de Borges, tem muitos livros. E uma cadeira muito
confortável, para dormir. Esta coisa de escrever é fisicamente esgotante, e é normal, no fim de um dia a escrever, eu adormecer por uns 30 ou 40 minutos.

Falando de folclore literário, tem manias ou talismãs de escrita?

Não. Mas muitos escritores têm-nos. Há um autor americano, Russel Hoban, que escreveu Riddley Walker (1980), um grande romance sobre o mundo depois de um holocausto nuclear em que a língua inglesa também foi destruída pela bomba e que também editou Turtle Diary (1975) sobre um homem obcecado
com tartarugas. Ele andava sempre com uma mochila às costas, e parecia uma tartaruga desenhada por Walt Disney. Dentro da mochila, Hoban carregava objetos importantes para ele, que, dizia, permitiam que escrevesse em qualquer parte do mundo. Quando chegava a um quarto de hotel, tirava os oito ou nove
objetos familiares da mochila e dispunha-os pelo quarto. Só quando estava satisfeito com a disposição é que conseguia trabalhar.

Esse método não funciona consigo?

Nunca fui um desses escritores que escrevem em qualquer lado. J.K. Rowling escreveu num café. David Mamet escrevia debaixo de uma árvore no parque. Eu não consigo. Invejo-os: ali estamos nós, sentados num sítio simpático, a beber café e a escrevinhar no bloco de notas, e a sentirmo-nos uns escritores. Hemingway recostado na La Closerie des Lilas, a escrever? Que agradável! Eu tenho que estar sentado no meu escritório.

No seu último romance, Dois Anos, Oito Meses e Vinte Oito Noites, o mundo colapsa depois de uma tempestade. É só um efeito literário, ou a resposta a algo real como o furacão Katrina?

Não o Katrina (2005), mas o Sandy (2012). Estava em Nova Iorque quando houve o blackout na cidade. Foi estranho: em Manhattan, abaixo da Rua 46, estava tudo escuro como breu. Acima, estava iluminado: houve gente no Upper East Side que nem sabia que tinha havido um furacão.

Uma boa metáfora do nosso tempo…

O estar na cidade ajudou à génese do romance. A tempestade de Dois Anos…é uma superversão dessa tempestade. Houve fotografias incríveis do Sandy: imagens de satélite em que se viam gigantescas nuvens espiraladas a ameaçar Nova Iorque. Mas falando de metáforas, nas fotografias de Wall Street vemos tudo escuro, exceto um edifício. Era a sede da Goldman Sachs iluminada enquanto o resto estava mergulhado na escuridão. O mundo dá-nos estas metáforas, nem precisamos de as inventar.

No livro, esse fio narrativo emaranhou-se para imensas histórias…

Sim, enlouqueceu. Lamento, é a minha cabeça, pensa assim.

Sente-se a tal Sherazade contemporânea com mil e uma histórias?

Um dos efeitos de crescer na Índia é que há tantas histórias… As Mil e Uma Noites é famosa, mas há muitas outras mais. A minha família é de Caxemira, no Norte da Índia, onde existe um compêndio de contos ainda maior: The Ocean of the Streams of Stories [O livro dos oceanos de histórias, compilação de lendas e his-
tórias de fadas do século XI], Kathasaritsagara. Foi originalmente escrito em sânscrito por Samadeva, mas este autor é como Homero: não há certezas se alguma vez existiu. Uma das suas histórias é a de um homem que empresta dinheiro a um nobre, mas este morre antes de pagar a dívida. O cobrador, aborrecido, lembra-se que fez um favor a um jinn, e que este lhe disse que poderia entrar no corpo de uma pessoa uma vez na vida. Ele esconde o seu corpo na floresta e entra no corpo do nobre morto, para que este se levante e vá ao banco buscar o seu dinheiro. No caminho, o nobre passa pelo mercado, e numa banca de peixes, o maior levanta-se e começa a rir. Todos reparam que há ali algo estranho e atacam-no. O cobrador foge, abando-
na o corpo do nobre, mas, quando vai buscar o seu corpo verdadeiro, descobre que, como acontece na tradição hindu, queimaram-lhe o cadáver – ele não tem corpo para onde voltar. Esta história era irresistível, e eu roubei-a: é um pequeno parágrafo no meu romance, uma homenagem deliberada.

Aspira a deixar o seu compêndio de histórias?

O meu amigo Martin Amis tem esta frase simpática: “O que queremos é deixar atrás de nós uma estante de livros. O poder dizer que, daqui até ali, sou eu.” Dezassete livros já começa a ser uma estante… Bem, não é como o Philip Roth que já tem uns 34. E há o Simenon que tem uns 100, e a Joyce Carol Oates que tem uns mil livros! [Risos.]

Desejou que os seus livros superem o teste do tempo. Os leitores com 15, 20 anos, talvez da idade dos seus filhos, que leem textinhos em smartphones, como é que entrarão nos seus livros luxuriantes?

O meu filho mais novo tem 19 anos, o mais velho tem 37. E nenhum deles lê muitos livros. Especialmente os meus [risos]. À exceção das histórias infantis que escrevi para cada um [Haroun e o mar de histórias (1990) e Luka e o fogo da vida (2010)]. Há uma convicção generalizada de que os mais jovens não leem. Não sei. Nos últimos 20 anos, ensinei em diferentes universidades, e há muitos interessados em literatura. Acredito que a boa literatura nunca foi uma forma para as massas: o número de pessoas que até lê Dickens não se compara à audiência de um episódio de Friends. Mas os leitores são um grupo determinado. O meu filho mais novo, obcecado por xadrez, lê livros de xadrez que lhe ensinam a defesa Nimzo-Índia…

Jose Carlos Carvalho

Também joga xadrez?

Quando era novo, jogava muito. Agora, ele nem quer jogar comigo. Diz: “Eu destruía-te.” O que, provavelmente, é verdade. E eu digo: “Não faz mal, eu não me importo de ser destruído.” O meu filho mais velho trabalha em relações públicas, e adora velejar. Tirou cursos de skipper, participa em corridas de barcos… Lê sobre esses temas. Mas a mim, o pai deles, não me leem. Se estiver a dar uma entrevista comigo na televisão, eles mudam de canal: “Ah, é o pai, vamos ver se está a dar alguma coisa de interessante noutro sítio.”

Sobre Dois Anos…, o The New York Times fez esta analogia: a batalha entre os jinn do bem e os jinn do mal, parecia um confronto entre super-heróis. Os cinemas estão cheios de tipos vestidos de licra justa a salvarem o mundo. Porque é que estamos a apoiar-nos neste “realismo mágico”?

É verdade, os filmes de Hollywood foram completamente dominados por gente com poderes fantásticos: X-Men, Vingadores, Batman… Pessoas que usam as cuecas por cima das calças. É um facto peculiar, este do Super-Homem não saber que tem de enfiar primeiro as cuecas e depois as calças. Este tipo de fantasia
tomou conta do cinema porque a tecnologia dos filmes melhorou ao ponto de fazer críveis os efeitos especiais. E, sim, eu quis fazer uma espécie de piada com esse fenómeno. O romance brinca com isso, mas de uma maneira irónica. Há estas pessoas a lançar relâmpagos das mãos, mas não se pode pensar que se trata de um universo paralelo: é uma sátira deste universo real.

Leitura óbvia: a invasão dos malévolos jinn é falar do Daesh e do fundamentalismo islâmico?

Não podemos dizer aos leitores como lerem. Mas é óbvio que o romance tem ecos do mundo real. Quando comecei a escrever sobre este muro entre jinn bons e jinn maus, o ISIS não existia. ISIS era o nome de uma deusa do Egito. E existe uma mercearia egípcia triste, chamada Isis Green Groccers, em Nova Iorque, aonde agora ninguém vai. O proprietário diz, orgulhosamente: “Não quero mudar o nome! Tem sido o nome da minha mercearia há 20 anos! Porque é que hei de mudar?” [Risos.] Mas uma das coisas mais estranhas que me aconteceu, ao terminar o romance, foi este fenómeno começar.

Não é a primeira vez que acontece…

Estou tão farto disso [suspira]… Os meus romances têm de se lembrar que são ficcionais e pararem de tentar tornar-se verdade [risos]. Mas eu estava a fazer mais do que criar uma alegoria das notícias: tentei dizer que este conflito não é tanto entre religião e secularismo, ou entre Ocidente e mundo muçulmano. O que está a acontecer é a luta, dentro de nós, entre o racional e o irracional. Esse conflito é a história da raça humana e
esta é apenas a sua última versão. É também um conflito interno. A razão porque coloquei a imagem de Goya no livro é sobretudo pela legenda [“Os sonhos da razão produzem monstros”], que parece sugerir que a razão é boa e a irracionalidade má. Na verdade, ele diz que quando força e fantasia se unem são criativas: são os pais e mães das artes. Quando são separadas é que se tornam monstros. Em Dois Anos… mostrei ambos os processos: o romance começa com um homem da razão [Averroes], um filósofo, a apaixonar-se por uma criatura de fantasia, uma princesa jinn [Dunia].

A América tem, agora, um jinn grande e loiro. Se Trump ganhar as eleições, o que pode mudar no mundo?

É o fim do mundo. Literalmente. Na sua primeira reunião de segurança, ele perguntou quatro vezes: “O que há de tão mau em usar armas nucleares?” A resposta é óbvia. Mas alguém colocá-la quatro vezes é aterrorizante. Ele disse que usará armas nucleares contra o ISIS. Nunca alguém a falar assim se candidatou ao cargo de Presidente dos EUA. Nunca. Portanto, sim, isto pode ser o fim do mundo. Ele é um grande monstro laranja.

Como é que se liberta de ser “Salman Rushdie, o escritor condenado por uma fatwa”?

Na verdade, nos lugares onde vivo já ninguém pensa nisso dessa forma. Isso acontece só onde as pessoas não me veem a passear sempre na rua. Quando estou em Nova Iorque, já ninguém me faz perguntas sobre esse tema. Porque veem que eu levo uma vida perfeitamente normal.

Já não sente medo?

Só quando falo com jornalistas estrangeiros. Tenho que lhes explicar que isso aconteceu durante 12 anos, mas que acabou há 17… É muito tempo. Give me a break, perguntem-me outra coisa.

É por isso que diz tantas vezes que é um escritor “bon vivant”?

Sinto que essa nuvem em torno da minha escrita obscurece a ideia do que ela é, realmente. Faz leitores desistirem de pegar nos meus livros: pensam que serão sobre extremismo islâmico e que vou ser um tipo de escritor sombrio… Esse é o último grande mau efeito da fatwa: criou uma atmosfera falsa à volta de mim e da
minha obra. Eu não sou assim, nem o meu trabalho o é. Uma das coisas de que gostei foram as reações a este romance, falando do humor: tantos disseram que é um livro muito divertido. Isso é bom: significa que talvez estejam, finalmente, a ver para lá dessa nuvem. É isso que estou a tentar fazer. Dizer: “Estou aqui. Não sou essa pessoa a quem essa coisa aconteceu.

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