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Oscars 2021: Os pesadelos e os fantasmas da América

Numa altura em que a Academia se apressa a instalar sistemas de quotas e pré-requisitos que ambicionam corrigir décadas de discriminações, a lista de nomeados para o melhor filme parece fazer um ajuste de contas moral de uma América atormentada pelos seus traumas e fantasmas. O conjunto de oito filmes nomeados encaixa-se numa cartilha de princípios temáticos, próxima de uma Declaração Universal dos Direitos Humanos, em busca de um cinema consciente do seu peso pedagógico e do seu poder de influência sobre a sociedade.

Judas and the Black Messiah Recordando o julgamento, nos anos 60, de Fred Hampton, dos Black Panthers, é o primeiro filme assinado por três afro–americanos a concorrer aos Oscars

Se é verdade que a indústria cinematográfica americana sempre esteve atenta ao mundo em seu redor, até porque é no tecido social que se encontram as melhores histórias, desta vez a incidência é tão explícita e flagrante que descobrimos, em muitos casos, a América a lamber as suas feridas.

A luta continua
Talvez a ferida mais exposta, nos últimos tempos, seja a da discriminação racial. A própria Academia, de resto, já estabeleceu quotas para a diversidade durante a cerimónia. Não obstante, continua a ser residual o número de não brancos galardoados com o principal prémio da indústria. Tematicamente, não há essa desproporção. Os filmes à volta de questões raciais, sobretudo da discriminação dos negros, têm marcado presença assídua nas últimas edições, tirando espaço, por exemplo, a histórias de perseguição antissemita tão recorrentes num passado recente.

Uma Miúda com Potencial Com o foco numa protagonista justiceira, o filme de Emerald Fennell aborda um tema muito sensível na realidade americana atual: os abusos sexuais Foto: Focus Features

Este ano, a “quota” temática do racismo é cumprida, logo à partida, por Judas and The Black Messiah, de Shaka King, que retoma um dos grandes fantasmas da América: o movimento Black Panthers. Ao contrário de, por exemplo, Martin Luther King, que se tornou o grande mártir “sacrificado” e “santificado” da luta contra a discriminação racial, os Black Panthers nunca receberam um apoio unânime da sociedade americana, sendo os seus elementos tratados, muitas vezes, como criminosos. Em Judas & the Black Messiah é feita justiça a Fred Hampton, líder e mártir do movimento. Um retrato que nos permite entender a justeza da causa, mas sem esconder os excessos do movimento. O filme desenvolve-se na dicotomia entre herói e traidor, focando-se num infiltrado negro que trai os seus irmãos. Nesse ponto de vista é quase um espelho de BlacKkKlansman: o Infiltrado, de Spike Lee, sem conseguir (nem sequer tentar, na verdade) copiar o estilo e o humor. Mas, acima de tudo, Judas and the Black Messiah põe o dedo numa ferida ainda mais concreta e atual: os pecaminosos métodos policiais e a desproporcional violência policial sobre a comunidade afro-americana. Reforça-se assim, sem ter de ir aos remotos tempos da escravatura, a necessidade de reagir aos traumas recentes e às práticas atuais, muito mediatizadas a partir do ignóbil caso de George Floyd.

O Som do Metal Tem seis nomeações para os Oscars, com destaque para a de melhor ator. Riz Ahmed interpreta o papel de um ex-baterista que perde a audição

Por coincidência, ou talvez não, os Black Panthers voltam a estar em destaque em Os 7 de Chicago, de Aaron Sorkin, um filme da Netflix nomeado para os Oscars. Neste caso, não está no centro do enredo, mas é uma das suas mais notáveis ramificações, expondo o tratamento discriminatório do fundador dos Black Panthers, Bobby Seale, em tribunal, sem direito a um advogado de defesa. O filme conta a história de diferentes grupos e organizações que se deslocaram até Chicago para protestarem contra a guerra do Vietname, junto à convenção do Partido Democrata que ali decorria. As manifestações não foram autorizadas e a polícia optou por uma intervenção violenta. Mas mais do que expor a ferida difícil de sarar que foi a guerra do Vietname, o filme denuncia um dos mais graves e mediáticos casos de deturpação da justiça, um dos grandes pilares da democracia americana. Numa altura em que o Tribunal Constitucional americano ganhou juízes radicalmente conservadores, o filme recorda um dos julgamentos mais escandalosamente parciais, em que o juiz desrespeitou a instituição numa tentativa explícita de prejudicar todo e qualquer elemento da defesa. A condenação dos sete (mais tarde revertida), acabou por resultar na exposição de uma presidência corrompida, sem olhar a meios para chegar aos seus fins. O filme é o favorito para ganhar o Oscar de Melhor Argumento Original, mas não resiste a um tratamento quase caricatural das personagens, o que muito o prejudica.

Mank Esta viagem aos anos de ouro de Hollywood, com realização de David Fincher e a marca da Netflix, lidera a corrida aos Oscars, com dez nomeações

Os 7 de Chicago, que conta com atuações de, entre outros, Eddie Redmayne, Michael Keaton e Sacha Baron Cohen, é realizado por Aaron Sorkin, realizador nova-iorquino branco, ao contrário do que acontece com Judas and the Black Messiah, de Shaka King, um promissor realizador negro, mais conhecido pelo seu trabalho em séries. Se ganhar o Oscar para melhor realizador será apenas o segundo negro a consegui-lo, depois do inglês Steve McQueen (com 12 Anos Escravo, em 2014).

Minari Lee Isaac Chung recorda a história da sua família, imigrantes da Cloreia do Sul nos EUA, neste filme com seis nomeações aos OscarsMINARI_02964 Yeri Han, Steven Yeun Director: Lee Isaac Chung Credit: Josh Ethan Johnson/A24

Uma América invisível
Shaka King está longe de ser o favorito. Mas a Academia pode concretizar um outro feito inédito, depois de, em 2020, pela primeira vez, Parasitas, um filme falado em língua não inglesa, ter recebido o galardão principal e o seu realizador, o sul-coreano Bong Joon Ho, o devido Oscar para o melhor realizador. A grande favorita para o prémio de realização este ano é a chinesa Chloé Zhao. Reúne dois critérios raros nesse favoritismo: é mulher e não é branca. Talvez o mais raro, neste caso, seja mesmo o facto de ser mulher – recorde-se que a única vez em que o prémio para a melhor realização foi para uma realizadora aconteceu em 2008, quando Kathryn Bigelow, com Estado de Guerra, superou Avatar, o grande favorito daquele ano, realizado pelo seu ex-marido James Cameron.

O conjunto de oito filmes nomeados encaixa-se numa cartilha de princípios, próxima de uma Declaração Universal dos Direitos Humanos

Chloé é uma jovem chinesa apaixonada pela cultura ocidental, tendo estudado em Londres e iniciado a carreira nos EUA. Assim, ao contrário do que acontece com Lee Isaac Chung, americano de origem coreana, também candidato ao Oscar como realizador de Minari, Chloé não mergulha nas suas raízes para nos trazer uma história pessoal, íntima e/ou excêntrica. Ao invés, atira-se de cabeça ao mais profundo universo americano. Ironicamente, numa altura em que tanto se fala em inclusão e segregação racial, Nomadland mostra-nos cabalmente que há formas de exclusão que vão muito além da cor da pele. É muito interessante que seja uma chinesa, recém-chegada à América, a chamar-nos a atenção para isso. Em Nomadland, Sobreviver na América, filmado numa linguagem indie, há quase que um retrato etnográfico daqueles a que, pejorativamente, se chama white trash (“lixo branco”), homens e mulheres que revelam, voluntária ou involuntariamente, uma exclusão da sociedade, do sonho americano. Nesse aspeto, Chloé é hábil a expor as entrelinhas psicológicas destas personagens, sobretudo de Fern – mais uma interpretação imaculada de Frances McDormand, que seria uma justa vencedora do Oscar de Melhor Atriz, embora não seja a favorita (espera-se que ganhe Viola Davis, em Ma Rainey’s Black Bottom). Nomadland revela uma América que muitos americanos não querem ver nem assumir.

O Pai Caso raro em que um dramaturgo (o francês Florian Zeller) passa a filme a sua peça. Anthony Hopkins, aos 83 anos, é um grande favorito para o Oscar de Melhor Ator

Se Chloé é uma chinesa fascinada pela América, Lee Isaac Chung é um americano que conta a história da sua infância e dos seus pais, coreanos, que partiram para os Estados Unidos da América e lutaram pela integração e sobrevivência, de forma original e empreendedora. Minari cumpre a quota da integração dos imigrantes, digamos assim, numa história que se liberta desse modelo simplista, pela humanidade e sentimentalidade que nos propõe através do olhar de personagens de diferentes gerações. Às vezes chega até a ser demasiado simbólica ou idealista, em personagens como Paul, que aos domingos carrega pela estrada uma pesada cruz de madeira, que nem Jesus Cristo, para expiar o seu sentimento de culpa, enquanto veterano da guerra da Coreia. Youn Yuh-jung é a favorita para melhor atriz secundária.

Nomadland Os excluídos do sonho americano, deambulando pela terra das oportunidades, são o tema do filme da realizadora chinesa Chloé Zhao, que tem seis nomeações aos Oscars

Na pele dos mais frágeis
Na verdade, os EUA sempre foram uma terra de imigrantes, e não consta que nem Trump nem os seus acólitos tenham sangue cheyenne. Hollywood sempre contou com notáveis estrangeiros para a sua indústria, como Charlie Chaplin, Josef von Sternberg, Fritz Lang ou Paul Verhoeven. Em Mank, Hollywood celebra um dos seus grande mitos, Joseph Mankiewicz, o mais notável argumentista da sua era, coautor de Citizen Kane, de Orson Welles, para muitos considerado o melhor filme de todos os tempos. Tal como Chung, também Mank foi filho de imigrantes, judeus alemães, que aprenderam a sobreviver na terra das oportunidades. David Fincher não faz um clássico biopic, mas antes um ensaio sobre uma personagem excêntrica e os tormentos do processo criativo. É, também, um filme sobre a decadência.

Mas, nesse domínio, mais acutilante é O Pai, a estreia na realização do dramaturgo francês Florian Zeller, que cumpre a habitual quota inglesa nos Oscars (é uma coprodução britânica e francesa). Aqui, não há uma ligação específica com os pesadelos americanos, pois a temática da velhice, da demência e dos cuidadores é universal e a sua abordagem comum ao mundo ocidental. Ou seja, estamos perante uma das maiores angústias da humanidade, que é também, muitas vezes, um tema tabu. O Pai vive à custa e à medida de uma sublime interpretação de Anthony Hopkins, que só por um lamentável equívoco ou preconceito invertido não levará a estatueta para melhor ator (o favoritismo tem sido apontado a Chadwick Boseman, por Ma Rainey’s Black Bottom). O desafio do filme é colocar-nos do lado do homem demente e entender a sua imensa solidão.
Se em O Pai há o desafio de traduzir a demência para os espectadores, em O Som do Metal, de Darius Marder, o desafio é reproduzir a surdez. Para tal, cria-se um ambiente sonoro específico, com um dispositivo eficaz e empático, que nos permite viver a história de um baterista de heavy metal que fica surdo. Inevitavelmente, o filme acaba por falar da inclusão de pessoas com deficiência. E fá-lo em duas camadas – através da inadaptação do indivíduo e, também, do isolamento da própria instituição em que a determinada altura ele se refugia, que funciona como comunidade “feliz” mas afastada da sociedade, do mundo real, que surge como cruel e implacável.

Os 7 de Chicago O realizador Aaron Sorkin recorda um célebre julgamento que aconteceu, em 1968, em Chicago abordando um tema muito na ordem do dia: a violência policial

Finalmente, Uma Miúda com Potencial, outro filme realizado por uma mulher, a atriz britânica Emerald Fennell, leva-nos para um dos maiores traumas que têm afetado a América, e a indústria de cinema em particular: os repetidos casos de abuso sexual. Aqui, não somos levados para um contexto empresarial como acontecia em Bombshell (2020), mas antes para um domínio mais comum. O filme trata de abusos após o consumo excessivo de álcool. E fá-lo de forma relativamente original, ao criar uma espécie de anjo vingador, uma mulher que se finge embriagada para surpreender potenciais abusadores. Expediente parecido ao clássico série B The Driller Killer (1979), de Abel Ferrara, só que revelando algumas fragilidades de argumento que não permitem levar mais longe uma subversão politicamente correta. E por mais contraditória que essa expressão possa parecer, uma certa subversão politicamente correta deverá mesmo marcar Hollywood durante dos próximos anos.

Uma cerimónia diferente

Pela primeira vez na História, a cerimónia de entrega dos Oscars, que decorre às primeiras horas do dia 26, vai ser dividida por vários palcos. Ao tradicional Dolby Theatre, junta-se a Union Station, em Los Angeles, e ainda duas “sedes” internacionais, em Londres e Paris. Tudo para ter a certeza de que a maioria dos galardoados pode receber a estatueta em direto e, ao mesmo tempo, cumprir as regras que obrigam às limitações de público em sala e tornam difíceis as deslocações.

Tal como aconteceu nas últimas cerimónias, não haverá um só anfitrião, mas participarão, entre outros, Halle Berry, Bong Joon Ho, Don Cheadle, Laura Dern, Harrison Ford, Joaquin Phoenix, Brad Pitt, e Renée Zellweger. A 93ª edição dos Oscars será dirigida pelo realizador Steven Soderbergh que, em entrevista à Vanity Fair, explicou: “Queremos fazer uma espécie de filme de três horas no qual, por acaso, alguns prémios são distribuídos.” Esse “filme” será transmitido em direto na RTP, numa emissão dirigida por Catarina Furtado e Mário Augusto.

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